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Críticas

Cineplayers

Mais que uma cruzada de pernas.

10,0
Há quem diga que certas imagens, ao alcançarem um certo nível de impacto, acabam se tornando maiores que o conjunto ao qual pertencem. E, no Cinema, isto já foi provado várias vezes como uma verdade. Você pode não ter assistido a Psicose, mas certamente conhece a tão plagiada e comentada cena do assassinato no chuveiro. Você pode não ter assistido a Titanic, mas certamente conhece a cena de Jack e Rose na proa dando seu primeiro beijo ao som da famosa música de Celine Dion. E você pode até não ter assistido a Instinto Selvagem, mas certamente possui conhecimento da polêmica cena envolvendo uma simples cruzada de pernas da personagem de Sharon Stone, talvez a imagem mais marcante do cinema comercial nos anos 90.

E não é nenhuma surpresa quando descobrimos que o arquiteto da coisa toda é Paul Verhoeven, um dos nomes mais autorais e rebeldes entre os anos 80 e 90, cujo desapego aos moldes convencionais de Hollywood permitiram-lhe dar vida a obras que quebravam os limites do conservadorismo, como Louca Paixão, Robocop – O Policial do Futuro ou mesmo o posterior Showgirls. Mas Instinto Selvagem, assim como os títulos citados no primeiro parágrafo, não se resume a uma provocadora cena onde Sharon Stone surge sem calcinha, e um olhar pouco mais aprofundado nos revela um thriller belissimamente orquestrado, genialmente conduzido e também corajosamente levantando questões sobre as relações humanas de um ponto de vista fortemente calcado no sexo, no prazer do gozo, no envolvimento carnal. Um filme que trabalha suas relações por meio de uma das necessidades mais básicas do ser humano. E o que este lado pode revelar.

A trama é básica até mesmo para um exemplar desse gênero, aparentemente oferecendo poucas oportunidades para que seu desenvolvimento alcance vôos maiores: designado para investigar o brutal assassinato de um aposentado cantor de rock, Nick Curran (Michael Douglas) segue pistas que o levam até Catherine Tramell (Stone), uma escritora de romances policiais que costumava se envolver com o aposentado cantor, mas que não apresenta nenhum sentimento de tristeza por sua morte. Acontece que o tal assassinato aconteceu justamente como em uma das mortes de um dos livros de Tramell, o que lhe torna a principal suspeita. Sensual e misteriosa, Nick vai aos poucos sendo seduzido e engolido pelo poder de persuasão de Tramell, ao mesmo tempo em que a investigação começa a tomar rumos inesperados.

A cena inicial, onde acompanhamos um ato sexual, até a cruel cena de assassinato, deixa bem claro o realismo e falta de pudor com que Verhoeven irá moldar sua narrativa, mas sem recorrer à apelação, permitindo que a aura misógina e sexualmente tensa que permeia os personagens seja quebrada com fluidez quando picadores de gelo e echarpes surgem em cena, transformando a atmosfera excitante em algo assustador e sangrento. O sexo surge nos momentos certos, assim como a sanguinolência, num trabalho de balanceamento eficiente de Verhoeven com o editor Frank J. Urioste.

Verhoeven, aliás, busca diversas inspirações em um dos clássicos de Alfred Hitchcock, o impactante Um Corpo que Cai, trajando Catherine com roupas semelhantes a da personagem de Kim Novak (uma maneira de acentuar a ambiguidade de Catherine, permeando a dúvida se ela é a autora do assassinato), utilizando o mesmo ponto de vista de James Stewart nas perseguições de carro (nosso olhar sempre é mantido na parte de dentro do carro de Nick) e permitindo que o diretor de fotografia Jan De Bont (que mais tarde viria a ser responsável pelo filme-catástrofe Twister) brinque como queira com as cores branca e vermelha, ressaltando a selvageria que vai tomando conta da relação entre Tramell e Nick.

Instinto Selvagem é também uma profunda reverência ao poder da presença feminina. O roteirista Joe Ezterhas pontua tal reverência sem qualquer sutileza, colocando palavrões e mais palavrões na boca de Catherine, que fala livre e abertamente sobre sexo e o quanto sente prazer no ato, colocando-a no mesmo nível de todos os outros homens que a rodeiam, assustados com tamanha ousadia de alguém do sexo feminino. E a própria descida ao inferno de Nick é uma evidência do quanto uma mulher pode influenciar a visão de um homem, algo que pode ser visto em uma determinada cena onde Nick é interrogado, com este repetindo algumas das frases que provocaram os policiais durante o interrogatório de Catherine.

Há quem critique a presença da Dra. Beth Garner (Jeanne Tripplehorn), psicóloga de Nick desde um fatídico acontecimento em sua carreira policial, e também sua amante. De fato, a personagem soa levemente deslocada do foco de Verhoeven, já que as atenções estão presas em Nick e Tramell, mas sua presença é justificada quando a própria começa a assumir seu próprio ar ambíguo e ressalta o tom de incerteza da investigação de Nick, levando-o a uma espiral de loucura que culmina num desfecho sangrento e inesperado.

Fugindo de qualquer lugar-comum que Hollywood tenha pregado desde seus primórdios, Instinto Selvagem permanece, mesmo após seus mais de 20 anos, como um thriller de poderosa concepção, ousado e provocante, aparentemente pequeno diante de sua história simplista, mas avassalador quando experimentado. Uma história policial aos moldes clássicos, mas que quebrou paradigmas com sua femme fatale Tramell, até hoje uma referência sobre o que é ser uma mulher poderosa e influente.

Comentários (9)

wolmor teixeira | terça-feira, 06 de Outubro de 2015 - 10:38

Gosto muito do Verhoven, mas acho esse um dos mais fracos dele. Dar 10 foi um exagero na minha opinião.

Reginaldo Almeida | terça-feira, 06 de Outubro de 2015 - 13:53

10 !!! 10 para a Sharon Stone né Rafaél (rsrs) ?

Davi de Almeida Rezende | sábado, 12 de Dezembro de 2015 - 22:40

Boa crítica, hein?

Só podia ter colocado a fonte das afirmações q vc fez sobre a suposta influência de Hitchcock e o Corpo Que Cai no filme. Ou é cousa da sua cabeça? RS

De resto, discorreu muito bem sobre o filme.

Sharon Stone é uma delícia lendária!

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