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Críticas

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Mais que uma biografia de Nelson Mandela ou um filme sobre rugby, Invictus trata do poder do perdão e da reconciliação.

6,5

Primeiro vamos aos fatos: Nelson Mandela nasceu em 18 de julho de 1918. Cursou a Faculdade de Direito na Universidade de Fort Hare, mas foi expulso por liderar greves estudantis. Em 1944, aliou-se ao Congresso Nacional Africano (ANC, no original), partido que pregava a luta contra o regime de segregação racial por meio de práticas não-violentas. Em 1960, após o massacre de Shapperville, o ANC foi declarado ilegal, e Mandela obrigado a cair na clandestinidade. Em 1961, fundou o MK, espécie de braço para-militar do ANC. Um ano e meio de depois, Mandela foi preso sob as acusações de fomentar movimentos grevistas e sair ilegalmente do país. Em outubro de 1962, foi sentenciado a cinco anos de prisão e enviado a Robben Island. Dois anos depois, quando ainda cumpria a pena, foi condenado à prisão perpétua por crimes de traição à pátria. Por influência do Presidente Frederik de Klerk, foi libertado em 1990. Solto, percebeu que seu nome estava mais forte do que nunca. O tempo de confinamento lhe dera status de mártir, de uma figura maior que a vida. Em 1993, dividiu o Prêmio Nobel da Paz com o próprio de Klerk. No ano seguinte, aos 75 anos, elegeu-se o primeiro presidente negro da África do Sul, cargo que ocupou até 1998. Nesse mesmo ano, casou-se pela terceira vez com Graça Machel. Desde então envolveu-se em algumas causas humanitárias, como a luta contra a AIDS, mas com a saúde já bastante debilitada (teve um câncer na próstata em 2001), suas aparições públicas são cada vez menores.

Agora, vamos ao que interessa: aqueles que pensam que encontrarão essas e outras informações em Invictus, 30º longa-metragem de Clint Eastwood, é bom preparar para tirar seus cavalos da chuva. Ao contrário do que possa parecer, a obra está longe de ser uma cinebiografia do líder sul-africano, ao menos no sentido tradicional do termo. Antes disso, o que interessa ao diretor é discutir, por meio da superação das diferenças entre brancos e negros na África do Sul, seus temas principais: a reconciliação e o perdão.

O roteiro de Anthony Peckham (baseado no romance "Conquistando o Inimigo – Nelson Mandella e o Jogo que Uniu a África do Sul", escrito em 2008 por John Carlin e lançado no Brasil em 2009), optou por iniciar a narrativa pelo dia da libertação de Mandela da Prisão Victor Verster. Logo na primeira sequência, de forma bastante simples e eficiente, o filme apresenta o conflito: a câmera nos mostra um campo de rugby, rigorosamente bem cortado. Nele um grupo de jovens brancos, adequadamente uniformizados, fazem seus treinamentos sob o olhar atento do técnico. Do outro lado da rua, vemos um terreno descampado, formado basicamente por areia, pedras e buracos. Lá há uma outra reunião de garotos, todos negros. Descalços, de calções e sem camisa, eles disputam alegremente uma partida de futebol, sem se importar com a falta de condições mínimas para a prática do jogo.

Os dois grupos parecem não perceber a existência um do outro. Até que sirenes tocam e a rua que os separa é tomada por uma comitiva de carros. Num deles, está Nelson Mandela, vendo a luz do sol do lado de fora da prisão pela primeira vez depois de 27 anos. A reação das crianças é oposta: os garotos brancos permanecem imóveis, contemplando aquela fileira de veículos, sem entender o real motivo para tanto oba-oba. Para eles, o nome de Nelson Mandela não significava coisa alguma, afinal ninguém ali havia nascido quando o líder anti-apartheid fora preso. Já os negros correm em direção à cerca que margeia o campo de futebol e gritam efusivamente seu nome. Eles nunca tinha visto Mandela ao vivo mas as histórias que tinham ouvido durante as últimas três décadas transformara aquela pessoa em algo mítico, uma espécie de representação de Deus na Terra.

A cena revela o clima acirrado que permanecia existindo entre brancos e negros naquele início da década de 1990. Ao contextualizá-la com a libertação de Mandela, ela não deixa de vir carregada de uma triste ironia: 27 anos se passaram, o grande opositor do regime do apartheid estava finalmente solto, e a África do Sul não havia sido capaz de dar um fim numa das maiores barbaridades sociais do Século XX. O filme não aborda as primeiras impressões de Mandela sobre o seu país, mas é até possível imaginar sua frustração ao ver sua África tão ou mais paralisada quanto àquela que ele vira pela última vez quase 30 anos antes.

Se estivéssemos diante de um filme de, digamos, um Richard Attenborough (Gandhi) ou Taylor Hackford (Ray), acadêmicos até o osso, a narrativa de Invictus certamente seria quebrada aqui, por um conveniente flashback, que percorreria toda a infância e adolescência de Mandela. Mas Eastwood, felizmente, evita a saída fácil e, ao contrário, faz a história avançar. O diretor parece pensar como o seu protagonista, que a certa altura diz que sua única preocupação é o futuro.

Por meio de uma eficiente montagem de cinejornais (que nos remete à famosa sequência do News on the March, do começo de Cidadão Kane), o filme resume rapidamente os primeiros anos de libertação de Mandela e transporta a história para o ano de 1994, quando ele é eleito Presidente. As reportagens mostram um país imerso numa das crises econômicas mais graves da sua história, potencializada pelos embargos comerciais que lhe são impostos pelas outras nações, em resposta ao regime do apartheid. No plano social, as coisas também não vão nada bem. Os níveis de desemprego e de criminalidade estão mais altos do que nunca. Para piorar, a eleição de Mandela intensifica a rusga entre brancos e negros. A África está à beira de uma guerra civil.

"Ele foi capaz de ganhar uma eleição. Será capaz de governar um país?", indaga um jornal no primeiro dia de mandato do novo presidente. Em vez de zombar da manchete, como faz o seu segurança, Mandela retruca: "É uma pergunta justa". Eastwood nos mostra que Mandela tinha a exata noção das dificuldades que estavam por vir. Mas que isso, ele sabia que a sua imagem de salvador da pátria que conquistara durante os anos de prisão, não serviria para encher a barriga de ninguém, muito menos para que brancos e negros dessem as mãos. Mandela teria que trabalhar e muito para transformar a África naquilo pelo qual ele tanto sonhara e lutara, a chamada "nação arco-íris".

Mandela enxerga que a minimização dos problemas do país passa necessariamente pelo fim dos conflitos raciais. E a solução destes surge na busca de um símbolo nacional, capaz de congregar brancos e negros, ricos e pobres, velhos e jovens. Uma entidade forte o suficiente para que a população voltasse a sentir orgulho de ser sul-africano. O presidente encontra o que estava procurando num grupo de brutamontes, vestidos de verde e dourado, e que atende pelo nome de Springbok: o time nacional de rugby.

De inicio a escolha parece a menos indicada possível. Afinal, historicamente o rugby sempre fora visto como um esporte dos brancos e endinheirados e o futebol, dos negros e pobres. Àquela altura histórica, o Springbok ainda representava para a população negra uma espécie de brasão não-oficial do apartheid. Tanto assim que ela não se sente nem um pouco incomodada ao ver a seleção do seu país ser seguidamente derrotada nos jogos preparativos para o Campeonato Mundial que seria realizado na África do Sul em 1995. Como diz um integrante da segurança particular de Mandela: "o futebol é um esporte inventado por cavalheiros, mas praticado por hooligans; já o rugby é um esporte inventado por hooligans, mas praticado por cavalheiros".

Mandela vê ali a oportunidade de unificar o país em torno de um causa comum e de um lema: "Um Time, Uma Nação". De um lado, ele convence os negros a não abandonar o Springbok naquela hora tão delicada. Do outro, se aproxima do capitão da seleção, François Pienaar, e faz com que ele passe a enxergar a conquista daquele torneio como algo infinitamente superior, que não se limitará às quatro linhas do gramado.

A aceitação dessas idéias implica numa mudança de cultura por boa parte da população. Eastwood nos revela um pouco desses aspectos ao transitar com eficácia entre o macro e o micro da História. Para tanto, ele não se limita a apresentar esse processo de transformação por meio de intermináveis reuniões de gabinete ou simplesmente pelas partidas de rugby propriamente ditas. Não. As verdadeiras alterações de comportamento estão nas pequenas sub-tramas que se desenvolvem ao redor da personalidade de Mandela. Tome-se por exemplo os seus seguranças particulares, todos negros. Ao saber que eles serão obrigados a aceitar na equipe a incorporação de integrantes brancos, a resistência é imediata. Tenso no início, o relacionamento entre aquele grupo de pessoas sofrerá profundas modificações ao longo do filme. Outro exemplo vem da personagem da empregada doméstica da família de Pienaar. De um ser completamente invisível no interior da casa, ela consegue em certo momento ter voz ativa e, depois, o direito a um ingresso para a partida final do campeonato. Mais à frente, vemos uma cena que até há alguns anos seria impensável: um policial branco e um garoto negro ouvindo o jogo pelo rádio, torcendo desesperadamente por um ponto da África do Sul.

A existência de tramas paralelas não tiram o filme do seu prumo. O personagem central, claro, é Nelson Mandela. Mas Invictus, por não ser uma biografia, não nos fornece dados sobre sua juventude. Mal e má ficamos sabendo de alguns detalhes da sua vida pessoal. Mandela está separado (sequer se menciona o nome de Winnie, sua segunda esposa) e mantém uma relação conflituosa com a filha. Não deixa de ser uma pessoa solitária, e que, longe dos holofotes, guarda uma certa melancolia no olhar (veja a expressão que ele faz ao se mirar no espelho, enquanto faz a barba). Eastwood prefere aprofundar outras características do seu personagem principal. O Mandela de Invictus é conciliatório (ele resolve os conflitos com os funcionários do seu gabinete num único discurso), é corajoso (no enfrentamento com os negros, quando os convence a abraçar a causa do Springbok), e humilde (ele faz questão de decorar os nomes de todos os jogadores da seleção nacional para cumprimentá-los na véspera do jogo). Em suma, um líder na acepção do temo. Dentro da proposta geral da obra, sua personalidade é desenvolvida de forma satisfatória.

Além disso, ainda que o rugby seja um elemento indissociável do filme, Invictus também não é um longa-metragem sobre esportes (ao contrário do que é sugerido pelo seu trailer e pelo seu pôster). Pode-se dizer que Invictus não é um filme sobre rugby tanto quanto Menina de Ouro não é um filme sobre boxe. O esporte, aqui, deve ser compreendido como um artifício narrativo encontrado por Eastwood para discutir os verdadeiros temas da obra.

O que realmente interessa a Eastwood é, por intermédio de um trecho da vida do líder sul-africano e das circunstancias que envolveram a disputa do Campeonato Mundial de Rugby, discutir o poder quase divino do perdão e a eterna possibilidade de reconciliação entre as pessoas. Refletindo sobre Invictus a partir dessa premissa, é surpreendente como ele se encaixa de forma bastante coerente com o restante da filmografia do diretor, especialmente com as obras mais recentes.

A vingança e o acerto de contas com o passado sempre foram os temas recorrentes na carreira de Eastwood. A partir de Invictus, ele parece ter chegado à conclusão que estes objetivos só podem ser alcançados por meio da compreensão pelo outro, da solidariedade, da superação das diferenças e, acima de tudo, da não-violência. Esses pensamentos já haviam dado sinais de vida em Os Imperdoáveis, talvez sua obra-prima, quando o personagem de Willy Munny, vivido pelo próprio Eastwood, revela ao jovem pistoleiro o quão difícil é matar uma pessoa. Em Sobre Meninos e Lobos, a vingança pessoal buscada pelo personagem de Sean Penn se revela precipitada e trágica. Mais à frente, em Menina de Ouro, o treinador de boxe tem que se colocar na posição da sua aluna para compreender e atender seu pedido final. Finalmente, em Gran Torino, seu personagem Walt Kowalski deixa de lado o preconceito que tem dos vizinhos orientais e sua ajuda ao garoto não se dá pela violência, mas sim pelo auto-sacrifício. Em Invictus, ele surge em vários momentos, mas especialmente no diálogo entre Mandela e seu segurança: "A reconciliação nasce aqui; a nação arco-íris nasce aqui;  o perdão nasce aqui também. O perdão nos livra do medo e libera a nossa alma.". A mudança de tom na obra de Clint Eastwood é tão perceptível, que se ele resolvesse refilmar Perseguidor Implacável, provavelmente o detetive Dirty Harry não dispararia tiros a torto e a direito com sua Magnum 44, mas sim ofereceria aos ladrões a outra face.

Nunca pareceu haver muita dúvida que Morgan Freeman sempre era o ator certo para viver Nelson Mandela nas telas. Com seu tom de voz inconfundível – ao mesmo tempo sereno e intenso – ele transmite a aura de dignidade que se espera do personagem. A semelhança física também ajuda. Além de Freeman, o nome mais importante do elenco é o de Matt Damon, que vive o capitão da seleção de rugby. Apesar de pouco desenvolvido pelo roteiro – seu François Pineaar é convenientemente apolítico, o que talvez torne seu convencimento pela causa de Mandella demasiadamente fácil – Damon convence como jogador de rugby e sai-se especialmente bem no sotaque sul-africano.

Dentro da extensa filmografia de Clint Eastwood, Invictus pode estar num nível abaixo se comparado com títulos como Os Imperdoáveis, As Pontes de Madison, A Conquista da Honra, Cartas de Iwo Jima, Gran Torino e até mesmo Bird, essa sim uma cinebiografia mais convencional. Mas é bem superior, por exemplo, que A Troca, incrível derrapada do diretor e – ao menos para mim – incompreensivelmente endeusada pela maioria dos críticos.

No fim das contas, Invictus possui infinitamente mais erros que acertos. Gostar ou não do resultado final é o que menos importa – no Brasil, inclusive, a avaliação do filme provavelmente será prejudicada pela nossa santa ignorância sobre o rugby. O aspecto que mais se sobressai em Invictus, é a constatação de que o seu diretor mudou. Sem ter que provar nada mais para ninguém, ele não tem vergonha de, diante do seu público, deixar impresso em película seus novos pontos de vistas, valores e opiniões. Aos 80 anos e cada vez mais produtivo, Eastwood é um cineasta que ainda vê no seu ofício um instrumento para o autoconhecimento e a evolução pessoal.

Comentários (2)

Álvaro Luiz Vieira Lubambo de Britto | sábado, 20 de Agosto de 2011 - 19:26

Régis você falou tão bem do filme, elencou todas as características que eu achei fabulosas nesse filme e mesmo assim deu apenas um 6,5? Sou bastante humilde para dizer que não posso avaliar um filme de forma tão pormenorizada e elaborada que você mas fico curioso para saber o que poderia te deixar bastante satisfeito hahahahahah Uma das maiores qualidades desse filme é conseguir ser tão emocionante e questionador tendo como pano de fundo um esporte como o rúgby do qual nada eu conhecia e mesmo assim fiquei encantado como filme. Obra de um grande diretor como o Clint Estwood. Parabéns pelo texto
PS: Concordo com você que a obra prima de Estwood foi "Os imperdoáveis", mas não acho que "A troca" tenha sido uma derrapada taão grande assim hhahahah

Vinícius Aranha | quarta-feira, 11 de Julho de 2012 - 02:33

Nota 7 é uma espécie de 9 pro Régis 😏

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