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Críticas

Cineplayers

Isto só pode ser um filme.

8,5

"O esquecimento do extermínio faz parte do extermínio".
Jean-Luc Godard, História do Cinema

Sob as rédias do repressor governo da República Islâmica, presidida por Mahmoud Ahmadinejad, no Irã, o cineasta Jafar Panahi é condenado a prisão domiciliar por seis anos, além de ser impedido, por vinte anos, de fazer filmes, escrever roteiros, conceder entrevistas à mídia e sair do país. Dentro desse regime, encontra uma saída possível: convida seu amigo Mojtaba Mirtahmasb para registrá-lo descrevendo seu último roteiro - e decupagem -, tendo em vista não haver nenhum dos itens judiciários coercivos impedindo tal ato. Menos do que mero retorno a uma espécie de literatura no cinema pela narração verbal dum roteiro, pois não importa, de fato, o que está sendo lido (sequer me recordo do que se trata a trama), o gesto da leitura representa a angustia dum cineasta privado de se expressar artisticamente, o grito de socorro, o último recurso para buscar esboçar um filme - e, claro, nesse percurso o diretor se depara com algumas crises de criação.

Em certo sentido, tentar (e, quando falamos de Isto Não é ium Filme, este é o único verbo possível) analisar a obra evoca, na verdade, o livro de Georges Didi-Huberman, "Imagens Apesar de Tudo", destrinchando as quatro fotografias tiradas clandestinamente pelos Sonderkommando, grupos de judeus forçados a operar as máquinas de extermínio em Auschwitz, para revelar ao mundo ocidental o horror contido nas câmeras de concentração. Abolir com o inimaginável: nos forçar a imaginar, a descobrir quatro fragmentos do genocídio - nem mais nem menos do que isso. Evidentemente, não estou querendo traçar um paralelo de equivalência entre o que ocorreu nos campos nazistas com a situação política do Irã: são conjunturas, épocas e regimes com nuances bastante distintas. Todavia, há certas semelhanças entre os dois atos: uma necessidade de revelar ao mundo uma realidade constantemente silenciada, através da imagem (da fotografia e do cinema). Se, no caso dos SS, falamos de imagens, segundo Huberman, nas quais reside um espectro posterior no momento em que são tiradas (pois quem o fez sabe que irão, possivelmente, morrer, mas fotografam para preservar sua existência, registram o instante para alguém ver), em Panahi observamos também essa necessidade de retratar aquele real para quem está fora do Irã, mas com uma necessidade muito grande de retomar sua existência pela forma de expressão artística ao qual está familizarizado: o cinema.

Cinema essencialmente como ferramenta de resistência política: não somente por, ao fazer um filme (e isto só pode ser um filme), Panahi estar violando uma lei arbitrária, mas, sobretudo, por encontrar em seu documentário uma forma de representar, através de seu microcosmo, todo um contexto sócio-político autoritário, sufocante, repressor dalguns direitos humanos básicos. Numa leitura equivocada, pode soar como uma egotrip, porém, ao se colocar tão fortemente em Isto Não é um Filme, o diretor traz a tona sua existência, de antemão lhe negada por um regime opressor, coloca sua imagem no mundo, num contato (ainda que não direto) com as pessoas - no caso, quem assiste ao seu trabalho -, já que essa possibilidade se restringe na prisão domiciliar. Levar ao mundo imagens dum Irã por quem sofre na pele a mão de ferro de Ahmadinejad, sem todas as relações de poder retidas nas representações midiáticas, se colocando como sujeito que enuncia um discurso.

Curiosamente, há toda uma trama elaborada para tirar Isto Não é um Filme do país: colocaram uma cópia dentro dum bolo e enviaram à Cannes. Há, nesse sentido, relações de poder patentes na legitimação do filme: tal realidade só existe - e deve ser vista - se gabaritada por Cannes e outros festivais. Além disso, Panahi se vale, claro, da sua posição enquanto cineasta premiado, de classe média, para ser porta-voz de sua realidade. Não que todos esses discursos e engrenagens legitimadoras desclassifiquem a força da obra (embora sejam sintomáticos), mas deslocam, talvez, o olhar sobre o filme, retomando também uma ideia de Huberman: não podemos esprerar nem muito nem muito pouco da imagem. Isto Não é um Filme não é capaz de dar conta do horror no Irã, sobretudo por ser fruto dum discurso de certo sujeito de certa classe econômica, mas pode ser um fragmento disso. Cinema, afinal, apesar de tudo.

Comentários (2)

Declieux Crispim | quarta-feira, 25 de Fevereiro de 2015 - 10:41

Muito boa crítica de um filme extremamente relevante.

Eliezer Lugarini | quarta-feira, 25 de Fevereiro de 2015 - 12:42

não vi este filme ainda, mas nesta semana por acaso, vi na programação do max o Cortinas Fechadas e fiquei muito sensibilizando tanto pela condição quanto pelo cinema do Panahi. Vou conferir este em breve, espero.

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