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Críticas

Cineplayers

Documentário sobre um desses grandes injustiçados pela MPB, vale pela figura de Macalé, mas deixa a desejar em termos de condução e fluência.

7,0

Nos últimos anos o cinema brasileiro vem privilegiando a música popular como assunto de cinebiografias. Desde Loki - Arnaldo Baptista (grande sucesso de público no Festival do Rio 2008), Herbert de Perto sobre o líder da banda Paralamas do Sucesso, até O Homem que Engarrafava Nuvens sobre o compositor de baiões Humberto Teixeira, passando por Pan-Cinema Permanente, bela homenagem ao poeta e compositor Wally Salomão, chega a vez do documentário   Jards Macalé: Um Morcego na Porta Principal, vencedor do prêmio do júri no Festival do Rio 2008, entrar em circuito.

Logo de entrada vemos o homenageado marcar o filme com sua personalidade forte. Enfezado, o músico pergunta: “mas como é que vocês vão conseguir todas estas entrevistas?”, demonstrando assim abertamente – e em tom sério – o receio de deixar que os outros revirem -  talvez sem critério - o baú de seu passado, guardando com unhas e dentes o que tem de mais importante “com medo que vocês desconstruam tudo que eu construí: minha vida”, completa ele, finalizando a frase num tom vacilante.

É assim que o vemos, portanto, como elemento ativo e guia vigilante da narrativa durante todo o documentário, que começa apresentado sua infância e sua mãe, através da qual conhecemos uma outra postura do músico, diferente do contestador habitual: o Macalé da casa, o oposto do Macalé da rua (e portanto do palco), bem no estilo daquele livro do antropólogo Roberto da Matta, "A Casa & A Rua".

As inserções de imagens gravadas em super 8 compõem grande parte do filme e este material foi retirado diretamente do acervo particular do músico que, bastante organizado, contratou um arquivista para dar ordem ao material e disse ter aberto os arquivos aos realizadores João Pimentel e Marco Abujamra sem interferir no que seria escolhido ou descartado.

Apesar de rejeitar com todas as letras o título de “maldito” que sempre o acompanhou e talvez seja o motivo do tom entre acanhando e displicente do seu reconhecimento popular, o título do documentário faz alusão a uma de suas composições mais polêmicas, "Gotham City", justo aquela que o colocou no hall dos amaldiçoados pelo mercado quando em plena ditadura militar o músico se põs a vociferar docemente em um desses festivais populares da canção: "Cuidado! Há um morcego na porta principal! Cuidado! Há um abismo na porta principal..."

Com os sentidos aguçados tal qual o morcego vigilante de sua canção, Jards fala de suas influências, desde a infância avizinhada de Vicente Celestino, passando pelas influências caseiras e clássicas, até a proximidade com o movimento da Tropicália cujo processo de formação deve a ele muitas de suas influências; sua participação na clássica montagem do espetáculo Opinião e a gravação do LP ao vivo Banquete dos Mendigos, que sob grande comoção acabou lotando o jardim do Museu de Arte Moderna do Rio.

Em fotos com John Cage, Lygia Clark e Hélio Oiticica ele demonstra a capacidade de agregar e transitar livre entre compositores, artistas plásticos e cineastas. Sua carreira como ator pode ser comprovada em O Amuleto de Ogum e Tenda dos Milagres, ambos de Nelson Pereira dos Santos nos quais Macalé também foi responsável pela trilha. Aliás, o cinema nacional deve a ele também duas trilhas clássicas: Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha. Em uma de suas parcerias mais famosas, com o sambista Moreira da Silva, o vemos contando exatamente como retratado no curta Tira os Óculos e Recolhe o Homem (de André Sampaio, 2008) o episódio de sua única prisão, ocorrida em Vitória-ES durante a turnê que fazia com o velho sambista.

A grande queixa do filme fica por conta da conexão de tantos materiais e informações. As transições semânticas realizadas com pouco cuidado e o clipe preguiçoso dedicado a retratar o que tenha sido o movimento tropicalista ofuscam em alguns momentos a presença instigante de Jards no filme. Mas o carisma do personagem nos ganha, e estes incômodos acabam esquecidos.

Controverso e inspiradíssimo, Jards Macalé é um agitador multicultural a quem o Brasil deve muitas de suas pérolas artísticas. Ter sua trajetória documentada, mais do que justo é também a certeza de que esta história estará salva para as próximas gerações.

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