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Críticas

Cineplayers

Sobre o mito e o Brasil.

8,0
Joaquim abre sua primeira imagem através de um recurso no mínimo inusitado: em um plano estático, vemos a cabeça decapitada de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, e numa narração em off, o próprio nos explana os motivos que lhe transformaram no mito histórico que se tornou e, em seguida, contesta os motivos sobre o porquê de ter sido o único dentre todos os conspiradores a ser esquartejado em praça pública, questionando igualmente sua representação heróica como figura histórica do país. E numa decisão sábia, o diretor Marcelo Gomes (Cinema, Aspirinas e Urubus) chega ao final da projeção dispensando qualquer outra recriação imagética sobre o desfecho de Tiradentes, preferindo aqui ater-se à figura martirizada da figura enquanto ser humano complexado dentro de contextos históricos que encontram ecos contundentes em nossa contemporaneidade política.

Entre rotinas, movimentos, patentes e recriações históricas que representam importantes facetas do ontem e do hoje no Brasil, Joaquim é primordialmente ambientado em meio ao estopim da jornada transformista e revolucionária de Tiradentes, que em seu caminho se depara com a corrupção do esquema capitalista e explorador da coroa portuguesa, a passividade da população garimpeira e o desvio moral dos governantes locais. Falando sobre o mito, o roteiro também de Gomes também fala sobre os problemas estruturais e internos do nosso país, aspecto discursivo que o cinema nacional, felizmente, faz pouca questão de fugir. O resultado da história nós conhecemos, mas não deixa de ser alarmante.

E se Tiradentes era santo ou traidor (e nisto, a inconclusão entre o que é realidade e ficção se faz pertinente e funcional), não é o que interessa para Gomes ou, consequentemente, para nós. De fato, a narrativa foge da mitificação do homem e o transforma numa persona que é um reflexo de seu tempo, ganancioso, ambicioso e seduzido pela riqueza, muito distante de se tornar o herói que os livros nos apresentam. E nisto, o recorte proposto por Gomes, tão duro quanto o personagem em si, amplifica o que há de micro na narrativa, transformando a fragmentação do que acompanhamos em eventos pontuais para a transformação política de Tiradentes.

Instável, a câmera de Gomes, aliada à fotografia de Pierre de Kerchove (Hoje Eu Quero Voltar Sozinho), contorna as restrições orçamentárias e dá vida à sua própria reconstituição autoral de um homem que se constrói contra o seu agora, e num trabalho bastante competente, Júlio Machado (que este ano também esteve em Entre Irmãs) interioriza e externaliza as transformações crescentes na persona de Joaquim José da Silva Xavier de acordo com que a narrativa lhe exige, numa performance que se sustenta no desequilíbrio e na formação daquela persona. Gomes talvez peque na pequena letargia do terceiro ato ou na edição por vezes abrupta de Eduardo Chatagnier, mas Joaquim se faz um filme necessário e completo como análise cinebiográfica de um nome primordial de nossa história.

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