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Críticas

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O monstro capital.

6,0
É mais um novo dia em Nova York e uma boa parte dos televisores está ligado no programa Money Monster, apresentado por Lee Gates (George Clooney), um tipo de guru financeiro que mantém os telespectadores por dentro das altas e baixas da bolsa de valores, sugerindo os melhores investimentos do dia através de muitas piadas, dancinhas ridículas, vinhetas barulhentas e insinuações vulgares. O programa é um sucesso, o público vibra com os números subindo e descendo, e quem comanda toda a dinâmica enlouquecedora por trás dos bastidores é a diretora Patty Fenn (Julia Roberts), que também atua como uma voz na consciência e breque na língua de Gates. O assunto do dia é o tombo de 800 milhões de dólares da empresa IBIS Clear Capital, uma das maiores apostas incentivadas por Lee nos meses anteriores, e o incalculável prejuízo aos acionistas derivado dessa queda abismal. A explicação do RH da corporação é um simples erro de algoritmo, mas para o pobre jovem Kyle Budwell, que investiu todo o dinheiro que lhe restava, esse tipo de satisfação não é o suficiente. Furioso, ele invade o programa ao vivo, faz Gates de refém com um colete de bombas e obriga Fenn a manter o circo todo no ar. 

A partir dessa situação-limite que Jodie Foster volta a investir na direção com Jogo do Dinheiro (Money Monster, 2016). Claramente uma análise da paranoia pós-crash da bolsa de valores de 2008 em Wall Street, além de retrato satírico dos bastidores do show business da televisão americana e os excessos do jornalismo marrom, esse trabalho tem como principal vantagem em relação a semelhantes como Grande Demais Para Quebrar (Too Big to Fail, 2011) ou A Grande Aposta (The Big Short, 2015) o fato de não se apropriar de uma linguagem muito matemática para situar o espectador. Pelo contrário, faz tudo de forma muito simples e resume bem a ópera: foi uma literal bagunça, ou bomba, e ninguém ali sabia o que estava acontecendo de fato diante de tanto histerismo e desespero coletivo. Mais do que isso, Foster coloca uma incômoda lente sobre a estrutura econômica americana que dita as regras do mundo todo e sobre os valores que se constroem a partir de uma base tão incerta e impessoal quanto o capital. Suicídios em massa, pessoas perdendo tudo da noite para o dia, tumultos, processos, gritos – basta o dinheiro faltar para o homem do mundo moderno literalmente surtar. Sob esse prisma, a diretora parte para um dilema moral e analisa uma crise de proporções universais que vai além da financeira. 

Cabem aqui comparações inevitáveis a clássicos como Rede de Intrigas (Network, 1976) e Um Dia de Cão (Dog Day Afternoon, 1975), ambos de Sidney Lumet, um cineasta que parece ser referência cativa de Foster nesse trabalho. Contudo, indo além do óbvio tom ácido de sátira e do ritmo frenético procurados pela diretora, o que Money Monster realmente mira é na impessoalidade do mundo de hoje, onde números valem mais do que pessoas e as relações se barram por meio de interfaces virtuais ou televisivas. Muito inteligente, ela filtra praticamente todas as principais sequências do filme através dessas interfaces, explorando um mosaico de telões, televisores, computadores, outdoors, plasma e câmeras de celular, empregando assim as máquinas e a tecnologia como uma espécie de câmera subjetiva que leva o espectador a enxergar o homem através da máquina, o que reforça um pouco da ideia que David Cronenberg apresentou há mais de trinta anos ao literalmente mergulhar seu personagem principal numa tela de TV em Videodrome - A Síndrome do Vídeo (Videodrome, 1983). Para Foster, o crash da bolsa de valores de 2008 em Wall Street foi muito além do reflexo de uma crise financeira de escala global, mas sim a ratificação do fato de que o mundo está mergulhado numa grande crise moral, cada vez mais mecanizado, eficiente, globalizado, porém formado por tipos solitários, gananciosos, egoístas, materialistas e indiferentes aos reais sofrimentos e injustiças que existem. George Clooney, canastrão, dançante, ostensivo, debochado e inconsequente reúne em si todo esse arsenal de ideias, principalmente a partir do ponto em que perde a pose diante da possibilidade de morrer, revelando a fragilidade e pequenez do poder do dinheiro quando comparado ao fator humano. 

Muito da força do filme está na habilidade de Foster em conseguir manter o pique mesmo com um plot de alcance limitado, desdobrando o fato inicial da invasão em um quebra-cabeça de personagens periféricos que aos poucos vai se encaixando e revelando um drama de proporções bem maiores, o que acaba por desvendar os vários lados de cada um, sem nomear mocinhos e vilões. Nesse meio, Julia Roberts faz milagres com sua personagem e se revela o eixo de sustentação de todo o roteiro, enquanto Jack O’Connell rouba a cena e defende com unhas e dentes as nuances de Kyle. Caitriona Balfe também consegue marcar presença mesmo com uma personagem menor, e Clooney revela seu lado mais ridículo e idiota, e quem diria que Foster conseguiria extrair isso dele mais do que os irmãos Coen já fizeram antes.  

O maior erro de Money Monster é a tentativa de manobrar o tom satírico da primeira metade para um caminho mais intimista na reta final, momento em que perde o equilíbrio e descamba para um sentimentalismo bobo e sem sentido, na busca de redenção para os personagens e soluções redondas demais para um assunto tão complicado. Talvez seja uma tentativa de conferir peso ao formato de típico thriller, quando na verdade seu maior acerto deveria vir da autoconsciência de ser um filme pequeno, simples, de gênero. A despeito dessa derrapada, se mostra o trabalho de direção mais autoral de Foster, que imprime aqui uma identidade e uma lógica técnica trabalhando a favor do roteiro, além do tema que melhor soube explorar. O capitalismo agressivo, selvagem, já denunciado no título original, é apenas o ponto de partida nesse belo quadro pintado por ela, pois o rosto desenhado em qualquer cédula de dólar é apenas mais uma prova de que o que vem antes do capital é feito de carne e osso.  

Comentários (2)

Barbara Rudge | sexta-feira, 03 de Junho de 2016 - 21:18

Parabéns, Heitor, por mais essa crítica! Mais uma vez, interessante mesmo para quem não assistiu ao filme, além da ótima redação. Dá gosto de ler.

Heitor Romero | segunda-feira, 06 de Junho de 2016 - 22:16

Ahhh muito obrigado, Barbara 😳🙂

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