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Críticas

Cineplayers

O perdão no meio de todas as coisas simples.

8,0
Julieta está de viagem marcada. Amanhã abandonará Barcelona para acompanhar o namorado a uma temporada portuguesa, deixando para trás a segurança da vida em seu país. E o passado. Depois de um passeio e de um encontro inesperado, Julieta toma uma decisão e escolhe o passado. A partir desse momento, Julieta mergulha num acerto de contas não somente com a sua história e com quem fez parte dela, mas principalmente numa jornada de perdão pessoal que ela mesma não sabe onde vai chegar, nem se vai chegar a algum lugar. O que ela sabe é que precisa disso. Mas essa é somente a história de Julieta?

Cada vez mais Pedro Almodóvar nos impregna de si mesmo, de sua cultura, de sua linguagem. Para alguém submerso em sua atmosfera pessoal ou que apenas tenha bebido muito de sua fonte desde os anos 80, fica cada vez mais difícil observar seus filmes e não vê-lo inteiro, praticamente desnudo. Por mais que digam o contrário, não vejo 'Julieta' como uma zona de conforto, mesmo que o melodrama tenha voltado à cena; após Amantes Passageiros, algo precisava ser feito e deveria ser radical. Hoje, escrevendo esse texto mais de uma semana após a sessão, todas as impressões parecem assentadas.

O cineasta espanhol mais importante da atualidade estava numa espiral do lugar comum. Volver havia sido seu último grande filme, mas lá já tinha uma espécie de certeza nas colocações e nas intenções; era excelente, mas não era novo definitivamente. Ainda assim, foi um baque assistir a Abraços Partidos, um filme onde muita coisa estava repetida e também errada, num roteiro confuso e desequilibrado, repleto de pontas soltas. O nível voltaria a subir em A Pele que Habito, mas do anterior ele herdou o gosto pelo rocambolesco da narrativa, melhor acertado, mas numa posição ligeiramente preguiçosa, apoiado em homenagens demais e viradas de roteiro idem. Ao chegar na comédia rasgada anterior, um festival de excessos e da mais absoluta falta do que dizer. Era preciso um choque de realidade, e é aí que percebo uma bem-vinda ruptura.

De posse dos direitos de três contos da vencedora do Nobel Alice Munro, Almodóvar passou anos pensando que finalmente estrearia na língua inglesa com eles, mas era hora de se voltar pro básico. E básico se tratando dele significava encontrar um novo tipo de roupagem, assumir uma identidade ainda mais simples e primal. Voltar ao melodrama pura e simplesmente era o mais fácil, esperado e desejado, mas como na ruptura anterior (entre Kika e A Flor do Meu Segredo), Almodóvar precisava achar um novo lugar para fazer ninho e voltar a criar. Hoje é fácil olhar pra trás e observar o que ele construiu, não temos como prever o futuro e saber o que vem após Julieta.

O que temos a saber de imediato é que 'Julieta' é uma vertente nova sim, um Almodóvar tragado de possibilidades melodramáticas embora dentro das cercanias do gênero. Imagine o cineasta drenado das lágrimas que tantos admiradores lhe rendeu, restando somente suas cores, paixão e verdade. Talvez seja fácil posicionar 'Julieta' como sendo seu trabalho mais maduro e centrado, de pegada naturalista ao extremo e uma figura central tão humana. De refinada edição, o filme tem nas elipses do belo roteiro uma jogada poderosa de matiz cinematográfica. No habitual grande trabalho de direção, Almodóvar não deixa escapar todas as oportunidades onde pode brilhar, da forma mais sutil possível. E Adriana Ugarte e Emma Suarez dividem a protagonista com muita elegância e unidade, um acerto de escalação e de sinergia entre elas. O senão do filme vai para uma meia dúzia de diálogos durante a projeção, que emulam a personalidade do seu criador para além da necessidade, dando um aspecto meio que uniformizado a esses momentos, como se Almodóvar estivesse literalmente falando com a boca de seus personagens; que eles sejam completamente diferentes entre si é o grande problema. Mas a cadência de ritmo plácido, a intensa observação e leitura do ser humano, a investigação aguçada sobre a devastação de segredos por sobre o passado e eventualmente o futuro, a carga emocional interior e o desfecho mais milimetricamente acertado do ano fazem de Julieta mais do que um excelente Almodóvar, mas especialmente uma ambiciosa e bem sucedida aula magna sobre o perdão particular.

Comentários (1)

Mateus da Silva Frota | segunda-feira, 07 de Janeiro de 2019 - 04:27

Corrigindo o início, trata-se de Madrid e não Barcelona. 😁

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