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Críticas

Cineplayers

Mais do que a surpreendente trama e as boas atuações, é a direção de Preminger que prevalece, neste que é provavelmente seu melhor filme.

9,0

Nem mesmo os maiores diretores de todos os tempos conseguem manter uma carreira sempre em alto nível. De John Ford a David Fincher, cineastas de todas origens e épocas inevitavelmente constroem suas carreiras com altos e baixos. Sempre, porém, há aqueles filmes que representam a essência da visão do diretor. São os trabalhos nos quais os cineastas atingem seu ápice criativo e conseguem, mais do que realizar uma obra-prima cinematográfica, combinar de forma impecável os elementos que formam a sua noção de cinema. No caso de Otto Preminger, Laura é definitivamente um destes filmes.

Produzido em 1944, a partir do livro de Vera Caspary, Laura conta a história do detetive Mark McPherson, interpretado por Dana Andrews. Ele é o responsável pela investigação do assassinato de Laura Hutton (Gene Tierney), uma moça de 22 anos morta com uma espingarda em seu próprio apartamento. Enquanto descobre mais sobre a vida da vítima, o detetive começa a formar a sua lista de suspeitos, da qual fazem parte o noivo de Laura, um amigo apaixonado por ela e uma mulher com ciúmes. Mais do que isso, o próprio detetive acaba se apaixonando pela morta, dificultando a situação. As coisas se complicam ainda mais quando acontece uma grande reviravolta no caso.

Aproximadamente sessenta e seis anos após o seu lançamento, Laura é considerado um verdadeiro clássico do cinema e um dos mais importantes exemplares do filme noir. Não é o primeiro e provavelmente também não seja o melhor, mas carrega diversas características do gênero e, ainda hoje, funciona maravilhosamente bem tanto como uma obra de mistério quanto como uma história sobre a obsessão e as relações humanas. Mais do que isso, em sua brilhante execução e técnica, Laura expõe a imensa capacidade de Otto Preminger como contador de histórias – não à toa, Laura foi o filme que o colocou definitivamente no panteão dos diretores hollywoodianos na metade do século.

Curiosamente, ele nem deveria ter dirigido o filme. O responsável pela adaptação seria Rouben Mamoulian, com Preminger no cargo de produtor. No entanto, decepcionado com o que viu nas primeiras cenas, Preminger decidiu mandar Mamoulian embora e assumir as rédeas do projeto, refilmando tudo e reescrevendo boa parte do roteiro. O resto é história do cinema. O cineasta imprimiu a Laura um estilo e um preciosismo que, provavelmente, a produção jamais teria e que fazem o filme ser lembrado e visto até hoje. Claro que o roteiro, escrito a seis mãos por Jay Dratler, Samuel Hoffenstein e Elizabeth Reinhardt tem muitas qualidades, mas é inegável que o grande valor do filme como cinema está em sua execução.

Uma das grandes conquistas do trabalho de Preminger em Laura é o apuro visual. Aproveitando-se das peculiaridades do noir, Preminger e o diretor de fotografia Joseph LaShelle criaram um filme quase totalmente passado em meio a sombras e fumaça. O que alcançam com isso, além de fazer com que assistir Laura seja um deleite para os olhos, é refletir uma constante sensação de dúvida e ameaça, proposta totalmente de acordo com o que a trama apresenta. Justamente, o trabalho de LaShelle na direção de fotografia foi premiado com o Oscar, o único que o filme recebeu (também foi indicado nas seguintes categorias: roteiro, direção, ator coadjuvante e direção de arte).

Preminger, além disso, demonstra em Laura o seu domínio na criação e na condução das cenas. O filme se passa quase totalmente dentro dos apartamentos dos personagens e sua narrativa se constrói unicamente em cima de diálogos. O mérito do diretor é não tornar a obra enfadonha em um só momento, utilizando, para isso, de movimentos de câmera intensos e cuidadosa concepção de seus quadros. Laura é uma interessantíssima história de mistério, mas, acima de tudo, funciona como uma verdadeira aula de mise en scéne, onde tudo parece estar no seu lugar correto, potencializando cada instante para que as cenas funcionem com perfeição.

O que também ajuda Preminger é o ótimo roteiro de Laura. O filme tem início já na investigação e não perde tempo com cenas desnecessárias ou longas exposições dos personagens. Tudo o que o espectador vem a saber a respeito de McPherson, Lydecker, Laura e Carpenter são informações inseridas de forma orgânica durante os diálogos ou no desenrolar dos acontecimentos, sem qualquer quebra de ritmo na produção. Dessa forma, Laura flui de forma bastante natural e, beneficiado também pela curta duração de oitenta e oito minutos, acaba antes mesmo que o público se dê conta.

Além disso, o roteiro também é muito bem-sucedido ao criar personagens complexos e interessantes. Talvez ainda mais importante do que descobrir quem foi o assassino é acompanhar a trama de obsessão de Laura, onde todos os personagens parecem ter seus objetivos próprios e algo a esconder. Dessa forma, o relacionamento entre eles gera o mesmo interesse do que a identidade do assassino, prendendo a atenção da platéia em todos os momentos. Preminger ainda realça este clima de dúvida e mistério ao jamais levar o espectador a se inclinar em relação a algum personagem no que diz respeito à identidade do culpado. Pelo contrário, o cineasta prefere o caminho mais elegante, colocando todos no mesmo patamar sem interferir na relação da platéia com a trama.

Da mesma forma, é impossível falar de Laura sem louvar a reviravolta que acontece na metade do filme. Indiscutivelmente, a surpresa pode ser posicionada entre as maiores surpresas da história do cinema – ela não apenas é capaz de deixar o espectador boquiaberto, como tem lógica no enredo e praticamente dá início a um novo filme. Por outro lado, ainda que o clima de mistério seja constante e o whodunit funcione, a resolução da trama é simples e, de certa forma, apresenta motivos óbvios. Enquanto isso, a narração de Lydecker soa desnecessária, por pouco acrescentar – mas sua presença se justifica, afinal, é uma das principais características do noir.

Como se não bastasse o impecável trabalho de direção, cabe a Preminger também boa parte dos méritos no que diz respeito à escolha do elenco. Por exemplo, o diretor comprou briga com Darryl F. Zanuck, chefe da 20th Century Fox, para ter Clifton Webb no papel de Waldo Lydecker – e a briga não somente foi vencida como se mostrou correta: o arrogante escritor é um dos melhores aspectos de Laura. Da mesma forma, Gene Tierney e Dana Andrews eram pouco conhecidos até então e foi a participação em Laura que os levou ao estrelato. Andrews, na realidade, está apenas correto, mas Tierney realmente ilumina a tela e consegue convencer a plateia de que uma mulher como Laura Hutton seria capaz de despertar tamanho fascínio.

E este fascínio não se limita às telas, estendendo-se por mais de seis décadas e fazendo parte da cultura do século XX. Além de ser um grande filme, lembrado até hoje como um dos principais representantes do gênero noir, Laura ainda deixou sua marca no campo da música, com um inesquecível tema que já foi regravado diversas vezes. Como todo grande cineasta, Otto Preminger, inevitavelmente, viria a pontuar sua carreira com alguns trabalhos de qualidade duvidosa. Laura, felizmente, está longe de ser um deles.

Comentários (1)

César Barzine | sexta-feira, 18 de Agosto de 2017 - 18:27

Ótima crítica, esse filme realmente é uma obra-prima

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