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Críticas

Cineplayers

Estiloso, extravagante e imaturo, Xavier Dolan faz filme excessivo com bons momentos.

7,0

Com um orçamento de 8 milhões de dólares, atores de apelo internacional (pelo menos em língua francesa) e bastante liberdade criativa, Xavier Dolan não iria se furtar de fazer algo grande, extravagante, exagerado. Voilà! Laurence Anyways (idem, 2012) não é só interminável, com longuíssimas duas horas e quarenta minutos, como também é um filme de época, com sequências inteiras que só se justificam pela reconstituição dos anos 80-90 (Dolan tem enorme apreço por roupas, jóias, perucas, maquiagem), além, claro, do tema principal, no mínimo exótico, de um homem heterossexual que quer mudar de sexo – sim, Dolan quis também jogar com a dubiedade, reticências, contestar. É lógico que ele vai se enrolar nesse emaranhado de intenções. O resultado é confuso e inconvicente, como não poderia deixar de ser.

A tese principal do diretor, cenógrafo, figurinista, DJ, editor e roteirista seria de que o amor resta independente de todas as mudanças, inclusive a do sexo de um dos parceiros (seria ele, Laurence, de qualquer maneira, anyways). Dolan aproveita o tema para falar de discriminação, mas não muito: seu filme é mesmo a história de um casal que tem suas vidas abalada pela decisão do rapaz de se tornar mulher. Perde o emprego, é rejeitado por amigos e familiares, sofre preconceito por onde vai, até de garçonetes, apanha na rua, escuta várias insinuações de ser ele um profissional do sexo, até cair em depressão e ter o dia-a-dia controlado por remédios. Enfim, ainda será obrigado a viver longe da mulher que ama. Não, não é fácil a vida de um travesti – sem contar os sapatos de salto, depilações, hormônios e os seios.

O papel principal, escrito em princípio para o ator Louis Garrel, terminou com outra estrela do cinema francês, Melvil Poupaud. Com uma atuação um tanto distante, acentuada pela pronúncia em francês um tanto monocórdia se comparado ao forte sotaque canadense dos outros atores, Poupaud representa sem muita convicção esse papel difícil e enrola ainda mais o filme, pois a personagem é incapaz de atrair identificação por parte da plateia, nem mesmo nos momentos em que é alvo de preconceito. A namorada, defendida por atriz intuitiva em tudo oposta a Poupaud, Suzanne Clément, também não ajuda: encoberta de roupa de brechós, aberrantes cortes de cabelo, cercada de música brega e toda explosões em muitas cenas, parece mais uma atriz de novela mexicana lutando pelo herdeiro milionário de sempre. Dolan flertou com o melodrama, mas, como não é Almodóvar, foi incapaz de criar um estilo próprio que ultrapassasse a pura estética cafona e lágrimas, situações intempestivas.

Fred, a namorada de nome masculino, decide seguir o amado na sua trajetória, dando apoio moral, e é onde o filme empaca e nunca convence. Mais adiante, quando ela desiste escolhe um estilo de vida mais tradicional, digamos assim (quem a julgaria por isso?), o filme ganha em densidade, pois adentramos no universo de gente comum com desejos mesquinhos, atulhados de enfadonhas tarefas amiúdes, o trabalho, a amargura, os amores frustrados. Mesmo o travesti também vai escolher uma vida mais ou menos estável ao lado de outra mulher, enquanto tenta desenvolver sua carreira de escritora, a única que parece ter lhe sobrado. Dolan usa o terrível inverno canadense para representar essa fase da vida do casal, mas a neve não é capaz de encobrir nem o ressentimento, nem a paixão dos dois. Encurralados, as personagens se movem. Fica mais interessante, mesmo que perdido da duração excessiva do filme.

De resto, é o puro Dolan. Os diálogos ásperos, tiradas de humor sarcástico, trilha sonora cafonérrima e onipresente, melodrama um tanto puritano, direção de arte kitsch, foco nas atrizes, em geral mulheres de personalidade marcante. A diferença é que, se nos dois filmes anteriores Dolan fez huis-clos intimistas, aqui ele ensaia uma, vá lá, crítica social, bem norte-americana, calcada na supressão da liberdade individual (no caso, direito à diferença sexual). Esse excesso de estímulos (e agora, mais a camada social) não chega a ser um empecilho para se ver o filme. Em Amores Imaginários (Les Amours Imaginaires, 2010), esse exercício de estilo era mais leve e saboroso, mais lento, a ser apreciado nos detalhes. Nesse Laurence Anyways, Dolan pesou demais a mão. Não chega a sufocar o filme, mas não tem a mesma organicidade do anterior.

Os excessos adolescentes de Dolan também se fazem notar. O jovem diretor de 23 anos tem uma paixão por quase tudo que seja um tanto fútil e que de certa forma reafirme sua homossexualidade. Ele ainda tem necessidade desse tipo de coisa, e suas personagens carregam isso, um ardor incontrolável por literatura, música, o falar ininterrupto e fumar enlouquecidamente. Em Eu Matei Minha Mãe (J'ai Tué Ma Mère, 2009) e Amores Imaginários, as personagens também eram adolescentes, e havia todo um frescor nesses arroubos. Aqui, ao tentar algo mais sério, como personagens mais velhos, Dolan não conseguiu amadurecê-los. E há também o amontoado de clichês, que já povoavam os filmes anteriores. Se antes havia a desculpa de serem os filmes de início de carreira, num terceiro filme começam a soar ingenuidades, pois até poemas escritos no leito pós-sexo tem – e isso seria uma grande prova de amor.
 
Dolan se joga também na caricatura, e nesse ponto nada pior do que a "família" de artistas/milionários que adota o travesti. É realmente uma pena que Dolan ainda  faça desabar na cabeça dos espectadores um arsenal de referências de sua predileção. Ele cita sem piedade, mas não é uma referência criativa como Brian DePalma fez de Alfred Hitchcock, mas uma parafernália pop regurgitada a plena força. Dolan parece, como alguns adolescentes, estar mais preocupado em mostrar o quanto ele sabe de cinema e o quão longe ele pode ir ao misturar as mais disparatadas fontes. Tudo pessoal e com seu inegável toque, diga-se.

Mas o cineasta tem estilo, ideias, é articulado e não conformista, o que faz seus filmes terem força. Em geral ele mais acerta do que erra nesse Laurence Anyways. Dolan já chegou num estágio em que a maioria dos diretores nunca chegaram nem chegarão, em especial por conta da força de suas imagens, a paixão com que exerce a carreira de diretor de cinema e a intensidade de sua encenação. Só precisa controlar a panaceia, pois corre o risco de ver seu cinema se transformar num carnaval sem grandes consequências.

Comentários (1)

Danilo Rocha | domingo, 04 de Novembro de 2012 - 15:44

As referências pop de Dolan são mesmo a coisa mais intragável em seus filmes, é tudo muito histérico. Contudo, gosto de tudo o que Demetrius aponta como negativo na crítica, principalmente a música brega. É o tipo de música q vc não escuta em casa, nem está no seu iPod, mas funciona na dramaturgia.

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