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Críticas

Cineplayers

Uma das mais ousadas e grandiosas experiências (cinematográficas) já concebidas pelo homem.

10,0

        “Considero-o um dos maiores do nosso tempo. Eu não o imagino noutro lugar. Seu nome vai viver na história inglesa; permanecerá nos anais da guerra; viverá nas lendas da Arábia.” 
Winston Churchill

Devido à própria natureza do meio, o cinema, desde o que se convencionou ser seu início, apresentava uma vocação nata para o grande espetáculo. É sabido que naquela ocasião em 1895 onde os irmãos Lumière exibiram o primeiro filme A Chegada do Trem na Estação Ciotat, e todos supostamente saíram correndo em polvorosa, ficava evidente o poder de fogo que a projeção da luz na grande tela exercia sobre as pessoas. E, uma vez que o cinema mostrava sinais de sua vocação para persuadir o público pela imponência das imagens gigantescas e espetaculares em movimento, nada mais natural que justamente as grandes produções tenham forjado a linguagem cinematográfica tal qual herdamos hoje. O “pai” da linguagem cinematográfica, D. W. Griffith, havia ficado tão enlouquecido e entusiasmado com a grandiosa produção épica italiana Cabíria, de 1914, que decidiu fazer o seu O Nascimento de uma Nação, de 1915, a epopéia americana que com mais de três horas de duração definiu os padrões de produção e toda a gramática do cinema, até então predominantemente um amontoado de imagens desconexas de temas bizarros.

À medida que a indústria do cinema se estabeleceu, foi crescente o número das grandes produções, com seus custos incalculáveis, as grandes paisagens, o apelo popular para sustentar financeiramente o modelo, uma mescla de obras de grande valor artístico e outras pérolas de gosto bem duvidoso –  a filmografia de um diretor como Cecil B. DeMille define com precisão o paradoxo das obras colossais do cinema. Entretanto, em 1957, um ex-editor de filmes inglês chamado David Lean tomava de assalto o mundo do cinema com uma grandiosa produção que aliou grande qualidade artística ao cinemão espetáculo, amplo apelo popular e uma reflexão profunda sob a consciência do homem (naquele caso, Coronel Nicholson). Ao menos você já deve ter ouvido falar de A Ponte do Rio Kwai, este filme dirigido por Lean ganhador de sete Oscars que foi o prenúncio que continha a receita para a obra-prima que estaria por vir – provavelmente o filme mais grandioso, mais trabalhoso e com as imagens mais esplendorosas (captadas totalmente de modo analógico) já apresentadas no cinema: Lawrence da Arábia. Em 1962, a audácia da era das grandes produções encontrava o seu teto, seu auge com este filme.

Trata-se da adaptação do livro “Os Sete Pilares da Sabedoria”, livro de memórias publicado pelo oficial do exército inglês Thomas Edward Lawrence, que na Primeira Guerra Mundial teria tido papel centralizador na revolta dos povos árabes, na chamada “Revolta do Deserto”, sendo o responsável pela união de facções que estavam em guerra entre si, de modo que, aliadas, passaram a atacar em unissono ao estabelecer uma ofensiva frente ao Império Turco e tomar as cidades de Aqaba, Damasco e Tafas. A legitimidade da versão de Lawrence presente em seu livro é freqüentemente posta em xeque por historiadores e estudiosos, que o acusam de romancear a realidade a seu favor. Mas o fato é que T. E. Lawrence já nos anos 30 e 40 era uma lenda tão grande na Grã-Bretanha que o mito se impôs no imaginário coletivo. Assim como diz o personagem editor de jornal (interpretado por Edmund O’Brien) em O Homem que Matou o Facínora, em frase que vale como a súmula de Lawrence: "quando a lenda se torna fato, publica-se a lenda.” O próprio filme de Lean é resultado de uma adaptação livre de um fato histórico, que não tem a pretensão da fidelidade, mas foca-se em uma trama que representa a barbárie e a insanidade da guerra, a tirania colonizadora da Inglaterra, a ganância dos povos beduínos, o sangue sendo derramado em vão – tudo apresentado por meio da trajetória de um protagonista que vai do deslumbramento heróico à total desilusão com seus ideais e consigo mesmo. A busca pelo deserto implica provocações, sacrifícios, violências entre os homens, e essa busca de felicidade é uma descida aos infernos. As metamorfoses pela qual a personalidade de Lawrence passa é também uma condição para essa chegada, o preço que os deuses cobram aos ambiciosos e também sua recompensa, porque somente a loucura permite os grandes feitos, e a riqueza e a glória são reservadas somente aos que ousam além de suas forças, igualando-se, desse modo, aos deuses.

Assim como o filme foge facilmente dos clichês das grandes produções que abordam a guerra – pois concentra-se mais nos conflitos e transformações psicológicas dos personagens do que em cenas de luta ou batalhas típicas para satisfazer o público adolescente, o personagem de Lawrence afasta-se do estereótipo do herói trivial do cinema, razão pela qual os realizadores do filme optaram por um ator não conhecido. O papel acabou ficando a cargo do inglês Peter O’Toole, em uma atuação que já foi mencionada com a maior da História do cinema pela Premiere Magazine. Foi bastante corajosa a escalação de O’Toole para protagonizar uma produção de orçamento tão alto. Ainda mais levando-se em conta de que este era um filme muito arriscado, por estar rigorosamente alheio a toda receita de sucesso garantido: longuíssima duração (quase quatro horas), orçamento elevadíssimo, nenhum ator conhecido, nenhum romance, casal ou história de amor, nenhum personagem feminino. Com raras exceções, praticamente todos os planos externos em locações no deserto da antiga Jordânia, alguns em regiões totalmente desabitadas e sem contato com o homem desde o séc. XVII, onde no filme só são avistados camelos e homens em conflitos. Ainda assim, o que faz desse filme tão especial?

Steven Spielberg explica nos extras do DVD que, em sua opinião, só pra começar, Lawrence da Arábia tem o melhor roteiro já escrito para o cinema. De fato, é muito brilhante o modo como é desenvolvido o personagem de Lawrence, desde o início do filme. Sutilmente pequenos diálogos e ações vão dando as pistas de sua personalidade atípica e fantasiosa, um homem disposto a todo o momento a transgredir a sua condição humana e transformar-se no mais perto do que se pode imaginar ser um messias. Visualmente, segundo Spielberg, é o maior milagre que já se pôde ver em uma tela da sétima arte. A beleza das filmagens do deserto é algo que jamais houve antes ou depois, capaz de fazer qualquer um abismar-se com o fato de existirem lugares assim neste planeta. O cenário é de tamanha força que o deserto passa a ser um personagem – com seus caprichos, sua benevolência e suas traições. Hoje pode ser habitual flertar com imagens fantásticas de filmes como Senhor dos Anéis ou mesmo Titanic, mas em 1962, sem absolutamente nenhum recurso de computação gráfica, foram necessários mais de 285 dias na mais inóspita das locações procurando por meses por determinada tonalidade de pôr-do-sol ou certo crepúsculo sob as dunas. Milhares de takes de camelos andando sob a areia imaculada (imagine o sacrifício a partir do take 2), e a audaciosa idéia de por na película uma miragem (haja lente e talento para isso) – a do personagem  Ali, brilhantemente interpretado pelo egípcio Omar Sharif (que viria a ser uma grande estrela mundial a partir dali), que surge no ameaçadoramente horizonte. Há ainda a linguagem do filme – elipses geniais como a cena onde Lawrence apaga o fogo de um fósforo e então o filme é imediatamente editado exibindo o sol nascente no deserto. Escolhas geniais na fotografia, como o grande plano que mostra a tomada de Aqaba pelos beduínos (uma cidade cenográfica foi construída só para esta cena), onde o plano geral percorre em panorâmica até acabar na imagem de um canhão apontado para o mar, razão pela qual a cidade mantinha-se protegida até aquele momento.

Em suma, qualquer texto ou crítica para um filme como Lawrence da Arábia, creio eu, será sempre superficial - algo sempre acabará fatalmente deixado de ser mencionado. Este ganhador de mais de dezoito prêmios, sete oscars (incluindo melhor filme), é relevante em todos os aspectos, do figurino à trilha de Maurice Jarre.  Do roteiro engenhoso ao orçamento (hoje em torno de US$300 milhões). De Anthony Quinn como líder da tribo dos Howeitats ao Alec Guinness como Principe Faissal. Uma obra de tanta profundidade, aliado a um dos trabalhos mais virtuosos de direção de fotografia, de atores e geral, sendo concomitantemente uma experiência de filmagem que seria financeiramente e fisicamente impossível de ser repetida tornam esse filme tão especial. Nada pode representá-lo – e sua premissa básica é justamente a experiência audiovisual, e não a oralidade escrita. Talvez por isso ele ainda hoje permaneça um filme tão presente nas listas de “melhores de todos os tempos” (o AFI - American Film Institute - o considera o melhor épico do cinema), e ainda seja tão assistido por cineastas e pelo público em geral. Spielberg diz que, antes de filmar qualquer um de seus filmes, antes vai lá assistir a Lawrence da Arábia. O filme ainda hoje é muito presente, seja ao ser apontado por Barack Obama como seu favorito, ou por figurar T. E. Lawrence na capa do cultuado disco “Sgt. Pepper Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles. E o filme, assim como o homem que o inspirou, permanece como a lenda do que ousou transcender os limites de sua condição.

Comentários (2)

Samuel Nascimento | segunda-feira, 23 de Dezembro de 2013 - 02:00

Ótimo texto, grandioso comentário sobre o filme, parabéns

Anderson Placido | domingo, 12 de Julho de 2015 - 07:17

Que crítica maravilhosa!!! Parabéns!

Simplesmente o melhor filme do mundo pra mim... Insuperável. Perfeito.

Imenso e grandioso como o deserto.

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