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Críticas

Cineplayers

Ótimo filme francês resgata os elementos que compõem um verdadeiro suspense.

9,0

Suspense. Palavra que deriva do ato de se deixar em suspenso, da espera, do momento em que se aguarda ansiosamente por algo que já fora anunciado e que se desenrola até o momento do clímax da situação, seguido por sua resolução, quando então o suspense termina. No livro Hitchcock/Truffaut: Entrevistas, o mestre Hitchcock deu uma aula em poucas palavras sobre a diferença básica do suspense para a surpresa, diferenciando o ato descrito acima daquele que aparece inesperadamente para surpreender o espectador, sem a construção prévia da tensão e, novamente aplicando o termo, do suspense.

No cinema contemporâneo é muito mais comum encontrar exemplos de filmes que utilizam o elemento surpresa do que o artifício do suspense, uma vez que o segundo exige muito mais da inteligência e habilidade dos roteiristas e diretores envolvidos para que seja bem desenvolvido, enquanto o primeiro facilmente é aplicado com a simples construção de uma situação surpreendente. Toda esta introdução serve para dizer que Lemming, que no Brasil recebeu o desnecessário subtítulo Instinto Animal, é um dos poucos exemplos recentes de um filme admirável do verdadeiro suspense, na concepção mais pura do termo.

A citação à Hitchcock no início do texto tem também a intenção de retomar os elogiosos comentários a respeito do trabalho de Dominik Moll, diretor de Lemming e de Harry Chegou Para Ajudar. Presente em Cannes com esses dois filmes, Moll é comparado com Hitchcock por preservar os elementos puros do suspense, sem os artifícios banais utilizados à exaustão no cinema recente. O diretor ainda utiliza em sua filmografia a estrutura que compõe grande parte dos filmes de Hitchcock: as situações extraordinárias que acontecem a pessoas comuns, o que serve para aumentar a empatia e identificação do espectador com os personagens de seus filmes. As comparações entre Moll e Hitchcock então, uma vez justificadas, não são nada gratuitas ou infundadas.

Em Lemming conhecemos Alain e Benédicte, um casal que acaba de se mudar para uma cidade no sul da França quando ele recebe uma proposta de emprego irrecusável. Quando este se aproxima do chefe Richard após uma bem sucedida invenção, ele o convida, junto com sua esposa, Alice, para um jantar em sua casa. É a partir dessa simples premissa que se desenvolve toda a trama do filme, e o título do mesmo, que pode parecer estranho, faz menção ao pequeno roedor escandinavo que curiosamente aparece na casa de Alain e Benédicte, na mesma noite do já mencionado jantar.

Uma metáfora poderosa e importante se constrói logo no início do filme, e ela é representada pelo lemingue que entope o encanamento da pia do casal principal. Ocorrendo pouco antes da chegada dos visitantes, o entupimento representa a barreira que impede a normalidade, até então presente na vida do casal, de continuar. O pequeno mamífero, que é a personificação da barreira já citada, representa a personagem de Alice, que causa todo o tormento na noite do jantar e, posteriormente, o desequilibro no relacionamento de Alain e Benédicte.

A sutileza se torna a principal ferramenta de Moll para captar as situações propostas por seu roteiro e de Gilles Marchand, e as cenas de Lemming contribuem mais com elementos visuais para o desenvolvimento do filme do que com explicações expostas em diálogos. Cada momento de Lemming, principalmente aqueles que ocorrem depois da metade do filme, trazem em si alguma informação fundamental para o entendimento do mesmo. A utilização do roedor para compor a história, por exemplo, não é gratuita: os lemingues, como certo personagem informa em determinado momento da produção, são conhecidos por cometerem suicídio coletivo, o que tem ligação direta com um acontecimento importante e surpreendente ainda no início do filme.

Todas as qualidades de Lemming descritas acima poderiam ser prejudicadas por escolhas erradas para o elenco da produção, mas não é isso que acontece. Outro ponto a se destacar no filme são as suas atuações, e o elenco composto por atores extremamente eficazes conseguem agregar ainda mais mérito ao filme. Laurent Lucas, também protagonista de Harry Chegou Para Ajudar, desenvolve Alain numa linearidade impressionante, não desequilibrando o personagem nem mesmo nas cenas mais dramáticas. As Charlottes, Gainsbourg e Rampling, também estão excelentes. No caso de Rampling, deveria ser considerado um pleonasmo colocar seu nome e a palavra excelente em uma mesma frase, e a atriz diz muito mesmo em uma personagem tão inexpressiva. Interessante também é perceber que Charlotte Gainsbourg pouco se descaracteriza visualmente para seus papeis, mas sempre desenvolve personagens extremamente singulares.

O que ainda poderia ser dito a respeito de Lemming certamente prejudicaria a sessão de futuros espectadores, que podem esperar sem medo de frustrações um dos filmes mais interessantes, profundos e significativos dentre a tonelada de produções atuais do gênero. Hitchcock aprovaria.

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