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Críticas

Cineplayers

Clássico fundamental da comédia cinematográfica e uma pequena pérola sobre os costumes e contradições da vida burguesa.

9,0

Enquanto o melodrama no cinema de gente como Douglas Sirk e Max Ophuls acabou sendo por vocação a forma preferida de tragédia da classe burguesa no século vinte, alguns filmes em toda a sua anarquia - de renomados diretores como Frank Capra, Howard Hawks, George Cukor e Billy Wilder – foram responsáveis por criar a screwball comedy, a comédia amalucada responsável justamente pelo contraponto: se em ambos os casos vemos a exposição da falência do modelo tradicional de homens absolutos e mulheres subservientes, nesse caso veremos pelo escopo da risada. Sem vergonha alguma em uma década notória pelo moralismo, diretores, roteiristas e atores viraram tudo de cabeça para baixo em filmes de teor sexual que fizeram a cabeça de uma classe média que, muito provavelmente, encontrava ali uma válvula de escape dos costumes repressores.

Levada da Breca (Bringing Up Baby, 1938) é um dos melhores exemplos dessa safra histórica; o mestre Howard Hawks em um dos seus grandes momentos em conjunto com o faroeste Onde Começa o Inferno (Rio Bravo, 1959) e o noir À Beira do Abismo (The Big Sleep, 1946). Um dos cinco filmes nascidos da colaboração entre Hawks e o ator Cary Grant, talvez o ator símbolo do gênero, presente em várias obras que marcaram época, como Jejum de Amor (His Girl Friday, 1940), a outra grande screwball comedy de Hawks, e Esse Mundo é Um Hospício (Arsenic and Old Lace, 1944), de Frank Capra.

Marcado pelo ritmo intenso dos diálogos e pela construção de uma atmosfera insana e absurda, onde situações rompiam com a “normalidade” da vida a favor do riso, como peças de roupa que se rasgam, confusão com objetos de donos diferentes, animais selvagens soltos em casas burguesas... Apesar de tão referenciado em produções ao longo das décadas, o filme dificilmente parece datado; os planos abertos, favorecendo toda a visualização das gags e a grande informação visual em quadro, só ajudam a assegurar o clima de “trem descarrilhado”, onde quase não há tempo para raciocinar frente à metralhadora de tropeços, resmungos, correria e gritos.

A história já mostra a preocupação de Hawks e de seus companheiros de risadas: o paleontólogo David Huxley, um profissional desajeitado e caxias, acaba tendo seu mundo virado de cabeça pra baixo por Susan, uma moça rica, atrapalhada e obstinada, que se apaixona por David e decide que vai se casar com ele – querendo ele ou não. Lá atrás, o diretor já já mostrava mulheres independentes e homens dispostos a serem transformados pelo sexo oposto. Com o tempo, David acaba se cansando da vida burguesa e tornando-se companheiro das situações insanas provocadas pela garota – como passear por aí com um filhote de leopardo ou procurar um osso antiqüíssimo enterrado por um cachorrinho de madame.

O tempo acabou mostrando a influência que esse filme teve sobre a cultura popular: não apenas filmes, mas também séries de televisão e quadros de esquetes copiam, com diferentes resultados de excelência, as estruturas de preparação, escada e desenlace em sua forma moderna. Hawks soube como ninguém dar uma unidade visual e narrativa a um filme que poderia facilmente ter altos e baixos; o roteiro de Dudley Nichols (que escreveu vários clássicos de Hollywood como No Tempo das Diligências [Stagecoach, 1939]) se mantém interessante até o último momento. A correria de informações acaba sendo assimilada de forma quase automática e quando menos é percebido já está se acompanhando a vertiginosa velocidade visual e sonora.

Filmes-tributo, como Essa Pequena é Uma Parada (What’s Up, Doc?, 1972), de Peter Bogdanovich, atestaram o impacto: a homenagem setentista colocava Ryan O’Neal e Barbra Streisand para repetirem os papéis em um contexto ainda mais liberal e sexual; a tensão entre Cary Grant e Katharine Hepburn segurada por uma hora e quarenta por Hawks eram propícios a criar identificação entre seus espectadores; a transformação cultural era forte nesse contexto pós-Grande Depressão e pré-Segunda Guerra Mundial, plena era de ouro de Hollywood, e seus valores ainda fortes e consolidados eram lentamente dinamitados por dentro; os valores tipicamente americanos de seus faroestes e filmes de aventura, como união e coragem, também exigiam uma transformação dos costumes tradicionais e hipócritas; o caso não é diferente aqui, onde uma aritoscracia moralista não parecia mais fazer sentido para seus personagens anacrônicos, aberrantes e, sobretudo, hilários.

Mestre raro na sétima arte, com o ritmo afiado feito navalha, as piadas amalucadas e obscenas de Hawks foram um passo a caminho da lenta renovação de costumes que só se concretizaria, de fato, vinte anos mais tarde. Mas na loucura, obsessão, independência e malandragem de Susan Vance, Hawks fez Katharine Hepburn lançar a primeira semente de independência em meio a um verdadeiro bacanal humorístico. O leopardo podia ser só um bebê ainda, mas já estava à solta.

Comentários (8)

Paulo Faria Esteves | quinta-feira, 27 de Setembro de 2012 - 16:21

Não parem de elogiar nada, é o meu filme favorito!😁 (*_*)

Comédia absolutamente genial com um ritmo magnífico e uma Katharine Hepburn épica! Também, com a personagem hilariante e louca que é Susan Vance, tinha de fazer bonito...

OBRA-PRIMA!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

LaPelecoteco Guimarães | quinta-feira, 27 de Setembro de 2012 - 21:42

Que bosta de cinéfilo sou eu? Nunca vi um filme com a Katherine (mah tenho vontade)

Alan Principe | domingo, 30 de Setembro de 2012 - 17:10

Assisti há uns meses. Formidável.

Eu tinha um preconceito com Katharine também, visto que ela tem uma cara de nojinho danada. Mas depois me apaixonei. Era muito linda.

Recomendo outros filmes com ela e Cary Grant - acho que são desta mesma época - Holiday e The Philadelphia Story (também com James Stewart). Considero o Bringing Up Baby o melhor dos três, contudo vale a pena conferir os outros.

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