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Leviatã

(Leviafan, 2014)
7,4
Média
140 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

A Mística do Poder.

8,0

Bellum omnium contra omnes
Guerra de todos contra todos

Thomas Hobbes

Antes de iniciar o texto sobre o filme propriamente dito, reservo espaço para uma consideração provavelmente irrelevante. Sobre o Oscar, acredito que uma das grandes funções da categoria melhor filme estrangeiro é apresentar aos espectadores comuns filmes considerados alternativos de países que alguns, pasmem, nunca imaginaram que produzissem filmes. Há alguns dias alguém me perguntou: “A China faz filmes?”. Ora, logo a China? Que susto esse alguém terá quando descobrir que a Nigéria tem uma grande produção cinematográfica. Obviamente não é obrigação do espectador saber quem e onde se produz os filmes, uma vez que tanto no Brasil quanto em vários outros países a maioria das produções simplesmente caem no colo do espectador que não escolhe o que ver, eles veem o que tem para ver. Quanto a essa categoria do Oscar, por mais reduzida e banal que possa ser, acaba como vitrine, o que inevitavelmente levanta questionamentos quanto às escolhas. De positivo está o fato de tais seleções despertarem atenção de uma parcela do público que procurarão vê-los ou ao menos terão ouvido falar de cada um. E esses filmes também terão mais oportunidades de estrearem comercialmente em alguns locais, ainda que no Brasil costumem ser esquecidos.

O russo Leviatã foi um dos selecionados. Vencedor do prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes 2014, o filme é dono de imagéticas impressionantes e de ótimos personagens cuja tragédia – no sentido do teatro grego – anunciada e o simbolismo que remete seu título lhe dá vigor para seu desenvolvimento narrativo dentro de uma realidade visceral e real. O real, por assim dizer, é bem mais angustiante e brutal que a fantasia e é suficiente independentemente de qualquer estímulo externo que vise atemorizar. Isso acontece pelo simples fato de ser real, alcançando nossa identificação e natural projeção. É da ordem da catarse. Aqui o poderio político emerge como Leviatã e arrasa. O regime projetado é na Rússia e, embora estejamos no Brasil, a sensação é análoga.

E para pensar esse Leviatã, filme que fora exibido durante a 38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, eu poderia entrar no mérito político russo, o que evidentemente fundamenta a história proposta no longa. A foto de Vladimir Putin pode ser vista no gabinete do prefeito em um quadro ao fundo pendurado na parede, e a fotografia coloca o prefeito – personagem que será discutido mais adiante – à frente da imagem do presidente. Há uma referência aí, especialmente mediante a forma com a qual a imagem nos é revelada. Não foi uma escolha aleatória. O diretor evidencia uma crítica política em distintos âmbitos, até por política ser o cerne de sua mundana história.

Um casal está para ser despejado de uma casa que edificaram. O prefeito da cidade precisa da terra e na justiça encontra um aliado. O veredito é proclamado apressadamente, parecendo um ato convencional irrisório. Isso situa o espectador no meio de um ambiente impiedoso frente a uma espécie de mística do poder o qual o roteiro investe, fechando cercos, vigiando e afunilando vidas com o simbolismo do título engrossando a temática. Antes de assistir ao filme, vale a pena ter ciência do significado bíblico de Leviatã, e especialmente a ponderação de Thomas Hobbes sobre o tema. Este símbolo está vigente em duas óticas ao longo do filme: o poder municipal e o poder religioso. Observem a dinâmica de relação entre o prefeito e um líder religioso que motiva as escolhas do político que se arma com a coligação de um consentimento divino. Notem, um não interfere no outro. Ambos se exercem estando o religioso reforçando a soberania de hierarquias.

Em meio à instância política, o prefeito Vadim (Roman Madyanov numa performance perversa) assume papel de vilão, uma vez que o antagonismo envolve os meios e as formas da instituição que este representa. Vadim vive numa redoma e constantemente está embriagado, temendo por seu futuro nas próximas eleições. Seus avanços predatórios freiam frente às ameaças que poderiam arruinar sua reeleição. Ameaças sobre ameaças, o totalitarismo se exprime nos dois lados, levando a um pensamento pessimista sobre o ser humano.

A estruturação do roteiro se dá por adventos de relações. Além da política e religiosa que existem enquanto pilares, ainda há outras que exprimem o passo a passo de uma história serena, de cotidianos quase que imutáveis – e imutável não é um termo negativo aqui, pois são escolhas de alguns personagens habituados à rotina. Convites para mudar de vida, tal como feito quando um amigo chama o outro para se mudar para moscou, logo é negado. A raiz e o orgulho reinam. Em volta do lar do protagonista Nikolay (Aleksey Serebryakov), como contraponto a beleza exuberante do litoral russo gelado próximo ao Ártico, restos de navios apontam no mar juntamente à carcaças de baleias na praia, sinal refinado dessa história de opressão.

O diretor Andrey Zvyagintsev aponta para a história de seu país sem receios. O auge desse ato, além das claras alusões ao poder instituído na figura horrenda do prefeito, está no humor polêmico instaurado em uma competição arbitraria de tiro ao alvo. Após alguns goles de vodca e sem garrafas para servir de alvo, surgem quadros com referências políticas históricas daquele país. Um desbunde em meio ao dramalhão meticuloso. Permita-se rir! Tal fato, além de alguns outros, fez com que o filme ganhasse censura na Rússia.

É inegável que Zvyagintsev é talentoso em contar histórias através de imagens. Pode-se questionar o ritmo de suas obras – implico O Retorno (Vozvrashcheniye, 2003) nesse questionamento –, mas sua habilidade em desenrolar temas e trabalhar camadas é algo admirável. Observem as ondas explodirem nas rochas inabaláveis, tal como as investidas assoladas de Nikolay. Em outro momento, um plano sequência mostra o interior da casa e um ataque sobre ele, como um braço imponente destrutivo. Quanto à narrativa, o tema central com a briga judicial pelas terras é incontestável, e sobre essa disputa eclodem outras questões que, ao invés de roubar a atenção de seu plot, o dimensionam, seja nos aspectos simbólicos trabalhados com exatidão – o que nos leva a honrar a decupagem do cuidadoso roteiro – como nas inferências ao homem e sua progressão, funcional graças ao aprofundamento de seus enraizados personagens.

Nessa guerra de todos contra todos, o novo trabalho de Zvyagintsev deverá melhorar com o tempo na memória de quem o viu. As imagens que abrem e rematam o filme figurarão enquanto representação idílica de sonhos afrontados. Sua longa duração pode causar certa exaustão, colaborando diretamente com a sensibilidade da temática bem como a forma com a qual vivem os vários personagens em constantes conflitos, quase sem espaço em meio à imensidão envaidecida proposta pela imagética sensorial. Nessa concepção de ideologias impostas pelo poder, o filme retrata pessoas que passam os dias sob ameaças e sob condições sem privilégios, sem oportunidade de apelo a alternativas. E nessa eficiência em dissecar o humano deixando sua carcaça vazia de sentido, tal como a baleia morta ancorada na praia, o pessimismo refletido exaure as vidas falidas de moral, vidas falidas de vida, vidas subjugadas ao estigma da fábula de Leviatã.

Comentários (15)

Lucas Souza | domingo, 08 de Fevereiro de 2015 - 11:39

Marcelo, "Ida" é outro filme muito bom e "Relatos" também é ótimo. "Timbuktu" eu achei um lixo e não assisti "Mandariinid", mas que me falaram que é excelente. Pário duro na categoria de Melhor Estrangeiro, como todos os anos...

Marcelo Leme | domingo, 08 de Fevereiro de 2015 - 12:49

Gostei de Ida e de Mandariinid. Talvez escreva sobre o segundo.

Diogo Serafim | domingo, 08 de Fevereiro de 2015 - 13:23

o único dos indicados a estrangeiro que não assisti foi mandariinid. para ser bem sincero, achei todos filmes bastante problemáticos (leviatã incluso). relatos com larga vantagem o pior dos 4 que assisti hahaha

Reginaldo Almeida | domingo, 15 de Fevereiro de 2015 - 23:45

Muito bom o filme. Mas é de doer. Como diz: "O impio prospera".

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