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Críticas

Cineplayers

Cinema popular e autoral.

8,5

Em Lílian M: Relatório Confidencial (idem, 1975) temos Carlos Reichenbach em seu primeiro grande filme (era o segundo longa de sua carreira), trabalhando uma mistura de cinema marginal (o filme é um dos seus representantes mais tardios) com a linha mais popular e industrial que se desenvolvia nos anos setenta. É como se o diretor se inserisse nessa tendência corrente à época para produzir seu filme e ao mesmo tempo lidando com um estilo próprio aos de seus companheiros de geração surgidos no movimento marginal do fim da década anterior.

O filme trabalha na tríade “campo-cidade-campo”, começando com um prólogo numa pequena roça em que Maria abandona o marido lavrador e os dois filhos pequenos, seduzida pela proposta de um mascate falador para lhe levar à cidade. No trajeto, sofrem um acidente, e ela segue sozinha para tentar a vida na capital paulista. Ir embora já não se resumia a uma opção particular, sendo quase uma necessidade, uma busca de equilíbrio pessoal e humano – sua energia era demais e estava sendo drenada naquele meio em companhia do homem rústico-rural e mais velho, como pode ser percebido nas cenas de sexo desprovidas de erotismo, em que o casal transa sem tirar a roupa e a mulher sem expressar prazer no próprio rosto. Seu olhar em toda essa introdução utilizada como ponto de partida no campo serve de espelho para um espaço imaginário que complementa o lugar de inscrição da personagem.

Na cidade grande, o filme vai se renovando de estilo, de tom e de gênero a cada personagem masculino (dentre industriais e figuras marginais) que entram na vida da protagonista (que passa a se chamar Lilian), que dali em diante se divide entre a miséria e o luxo. Comédia escrachada, melodrama popular, narrativa policial e permeado, por vezes, de um subtexto político, Lilian M é todos esses gêneros e ao mesmo tempo nenhum, com a sensação de um tempo em suspenso, remetido ao passado pela narração da mulher (ao contar a sua história para um gravador ligado, num recurso metalingüístico do cineasta), porém atirado ao presente puro.

Para Lilian, mais vale se perder, sofrer por aflições sinceras do que ser merecedora de uma paz desafortunada. Do concubinato à prostituição, só tem a si mesma como cúmplice de uma procura por desejos maiores que qualquer definição. Reichenbach não pretende denunciar nada, apenas olhar para a sua personagem com a capacidade de direta ou sutilmente dar conta de retratar uma realidade contemporânea, mas sem fazer disso seu elemento principal. Interessa-lhe a busca, que é típica e constante dos deslocados, na luta de Lilian para que o seu destino não seja, de uma forma ou outra, traçado pelas figuras masculinas, com uma visão bastante particular da protagonista que tenta, de alguma maneira, manter o controle das rédeas de sua existência (a despeito das conseqüências), para então firmar sua identidade.

Mais do que sobre o que diz, o conveniente é reparar no que há para ver em Lilian M. Pois Carlos Reichenbach é daquela espécie de cineasta cada vez mais rara para os quais a forma é o conteúdo, num filme que se faz diante dos nossos olhos, com a fluidez e o frescor de quem vai, aos poucos, descobrindo seus caminhos. O trabalho de direção de Reichenbach, de influências evidentes e confessas, sabiamente retrabalhadas, segue uma mesma lógica encontrada em obras-primas como A Moça com a Valise (La Ragazza con la Valigia, 1961), de Valério Zurlini (em momentos como na estação de trem ou a cena final) ou A Mulher Inseto (Nippon konchuki, 1963) e Desejo Profano (Akai Satsui, 1964), ambos de Shohei Imamura (filmes que o próprio cineasta reconhece como as maiores influências para Lilian M.).

Mover-se, para a personagem, equivale a estar viva, fazendo do seu deslocamento uma resposta a sua extrema ânsia de viver, e importando menos o destino final do que a trajetória percorrida, com o trabalho tanto de excessos quanto de sutilezas do cineasta, aos quais o fluxo das imagens só faz acentuar. Resta ao espectador vivenciar e experimentar esse movimento junto com o filme.

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