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Críticas

Cineplayers

Um dos melhores filmes brasileiros da história é lá da época muda do cinema brasileiro, com a mais absoluta certeza.

8,0

Antes de começar a falar sobre o filme Limite em si, gostaria de lhes contar um gosto pessoal que vai fazer com que minha opinião sobre o filme fique ainda mais forte: gosto de muita pouca coisa da época muda do cinema. Não que eu negue o seu valor, pois reconheço que as raízes de tudo o que vemos no cinema atual nasceu lá, está registrado, não há como negar. É que simplesmente nunca tive muita paciência para aturar duas horas de filmes que necessitam serem interpretados a todo instante, o que os torna pesado e, na maioria das vezes, cansativos.

Lógico que isso é só minha opinião, há muita gente que discorda (e pode até se ofender com o que escrevi), mas além de Chaplin, apenas dois filmes conseguiram driblar essa barreira pessoal sobre o cinema mudo que possuo: O Encouraçado Potenkim e Limite, o filme em questão (não estou incluindo o expressionismo alemão, que tem forte influencia sobre Limite, e que não acho de jeito nenhum). Ou seja, mesmo não curtindo muito o estilo em que o filme se encontra, ele conseguiu me contagiar de uma maneira que já o considero como um dos melhores filmes brasileiros da história.

Mário Peixoto assina essa obra que, por muitos, é considerado o filme mais importante já feito no Brasil. Na época, apesar de pouco assistido, ganhou dimensões internacionais, chegando a ser elogiado por cineastas importantes, como o russo Sergei Eisenstein. Ao lado de Ganga Bruta, de Humberto Mauro, representa a maior obra já produzida em nosso país (se bem que não gosto de Ganga, acho muito chato). No início da década de 80, Saulo Pereira de Mello restaurou a única cópia existente no Brasil do filme, dando a nós a oportunidade de assistir e, como hoje, avaliar tudo o que esta rica obra poderia nos oferecer. Foi filmado quando Mário Peixoto tinha apenas 22 anos, e é uma pena que um diretor tão promissor quanto ele, com essa sua obra de estréia, nunca tenha feito um segundo filme (até tentou, mas nunca o terminou).

O enredo de Limite parece ser simples: um homem e duas mulheres estão confinados em um barco em meio a imensidão do oceano e vão contando suas histórias, logo após uma tempestade. A maior diferença de Limite para os outros filmes da época é o modo de contar a sua história, que foge totalmente dos padrões clássicos narrativos do cinema norte-americano, por exemplo. Temos, em forma de construção e não como um recurso, o uso freqüente de flashbacks para contar a história de cada um, fazendo na verdade um profundo estudo sobre o comportamento do ser humano e sobre os seus dramas existenciais.

Há uma interação rítmica de imagens para expressar o que os personagens estão sentindo. A realidade nunca é consumada, nada é descritivo. Com isso o filme ganha uma identidade pessoal de cada narrador conforme vamos conhecendo suas histórias. Os planos somavam-se para criar um sentido ao invés de cada um responder por si só, exatamente o método de montagem que Eisenstein defendia. Os personagens mesmo, cada um tem um ícone significativo dentro da obra, como a mulher que é o símbolo do ânimo, o homem da desistência e há a terceira mulher, que desistiu de viver. É um filme bem triste, macabro, pesado. É muito mais do que ele mostra, muito mais profundo, pode-se dizer até que ele revela sentimentos.

O que mais me chamou atenção em Limite, no entanto, foram os ousados ângulos de câmera usados por Mário, levando em consideração que elas não tinham o peso e a mesma facilidade de movimentação das que temos hoje. Os movimentos encontrados no filme classificam-se como extraordinários, uma vez que há constantes travellings (como a câmera que gira em torno da mulher em certo momento), enquadramentos ousados (como por cima de toda a ação; ou em outro momento a câmera que é posta de lado, paralelamente ao chão; ou então quando a câmera simplesmente não enquadra o personagem, e sim o cenário, deixando-o no espaço off da tela!), e muitos outros planos bem pensados e que ajudam muito a criar essa poesia visual que Limite tenta alcançar.

A fotografia também é uma das mais belas. O modo como a natureza é usada, transformando-a em parte do filme, é dos mais belos não só da época, mas até hoje mesmo. Lembro de cada tomada do mar, de árvores, das pequenas coisas da vida, como uma fita métrica ou a tesoura para ligarmos a imagem dos objetos aos personagem que os utilizam. Enfim, nenhum plano é gratuito, mesmo que você não entenda o seu significado. Tudo é uma metáfora. Quando digo que a realidade tornou-se parte do filme, estou me referindo a força da interação personagem-realidade que o filme ganha com o modo como ela é exposta. Se você um dia precisar estudar fotografia de filmes, não precisa ir muito longe não, como Rússia, EUA, França ou outros países Tenha a certeza de que tudo o que você precisar para um estudo está aqui, nesse filme. Esteticamente, sem medo de errar, posso dizer que o filme é simplesmente perfeito.

É interessante também compararmos reações dos personagens para os diferentes tipos de confinamento que se encontram, como falei em um pedaço do texto um pouco mais atrás. Tomando por exemplo a primeira personagem do filme a contar sua história, que trocou as grades reais da prisão por um isolamento ainda pior, a liberdade do mar que, em toda sua extensão azul, cria grades ainda mais fortes do que onde ela se encontrava antes. O modo desordenado com que a história vem sendo contada nos transmite uma certa sensação de perdição, desequilíbrio, desespero: exatamente o que nossos personagens estão sentindo.

O elenco do filme é de se fazer inveja a qualquer superprodução. Além do próprio Mário, temos nomes fortes como Iolanda Bernardes, Edgar Brasil (que trabalhou com Humberto Mauro no já citado Ganga Bruta e em Sangue Mineiro, outro grande sucesso brasileiro), Olga Breno (Um Beijo Roubado) e a bombástica Carmen Santos, ícone do cinema brasileiro, que merece até um capítulo a parte. Ela produziu muitos filmes, mas nenhum conseguiu ser finalizado de fato, seja por incêndios 'acidentais' ou por problemas técnicos. Uma mulher de força e ousadia em plenos anos 20, 30.

Limite é grande, delicioso de se assistir e com muitas metáforas ao nosso dispor. Tem um clima pesado triste que eu adorei. Fechou com chave de ouro a participação brasileira no cinema mudo, uma vez que o sonoro já estava invadindo mundo afora e dominando o seu espaço. Como o próprio nome do filme diz, é uma análise sobre até onde o ser humano pode chegar em seu esforço, e o modo como a história nos é contada coloca Limite no patamar dos melhores filmes brasileiros já feitos. Se tiver a oportunidade de ver, não pense duas vezes.

Texto retroativo da série Clássicos Brasileiros

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