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Críticas

Cineplayers

Um contido Steven Spielberg faz mais um drama histórico com cenas embaraçosas e excesso de boas intenções.

6,0

Steven Spielberg parece ter ouvido as críticas feitas ao seu trabalho ao longo dos anos. Seu Lincoln (idem, 2012) é bem menos melodramático que a maioria de seus filmes recentes, não castiga o público com uma saravaida de violinos do John Williams e tem um certo estofo intelectual vindo do roteiro de Tony Kushner. Mas Lincoln está mais para uma monocórdia minissérie da HBO, que Spielberg vem se dedicando a fazer há mais de uma década, do que para um grande filme. A Guerra Civil encenada na tela parece uma visão escurecida de O Resgate do Soldado Ryan (Saving Private Ryan, 1998) e, mesmo livre dos canhestros diálogos, o tom solene termina por anestesiar tudo, reduzindo personagem principal e filme a sorumbáticos maneirismos.

Se Spielberg maneirou no tom, suas boas intenções em excesso estão em toda parte – e bastante insidiosas, pois o diretor, no seu humor supostamente inteligente, não consegue ser discreto. Seu Abraham Lincoln é um êmulo de Barack Obama (do qual Spielberg, entusiasta de primeira hora, foi um dos maiores doadores na última campanha) para alfinetar o Partido Republicano. Lincoln era Republicano e mesmo assim lutou contra as elites de seu país para proibir a escravidão nos EUA, antecipando as lutas pelos direitos civis, voto feminino e outras causas ditas “liberais”, bem longe do atual Great Old Party, cuja facção mais radical, o Tea Party, empurrou a agremiação para a direita religiosa e reacionária. Com seu jeito caipira, suas historietas de gosto duvidoso, e embalado sempre pelo senso comum (sim, lembra o Lula), o Lincoln de Spielberg, apesar de o oposto do eloquente atual presidente Obama, o primeiro negro a ocupar o cargo, estão em sintonia.

Alguns debates sobre o fim da escravidão são óbvias referências à atual discussão sobre o casamento gay – da qual Obama se declarou recentemente a favor e o roteirista Kushner, ativista, é uma das principais vozes. Kushner calibrou o roteiro para que as duas discussões, abolição dos escravos e casamento gay, caminhassem juntas o filme todo. "Não queira fazer ser iguais o que é naturalmente diferente”, diz um deputado da oposição (a maioria dos discursos mostrados são contra a abolição, ressaltando o absurdo dos argumentos). O deputado Thaddeus Stevens (Tommy Lee Jones), numa tentativa de aplacar a dúvida sobre a questão da igualdade racial, solta o sofismo de que a abolição não tornaria brancos e negros iguais, eles apenas não teriam distinção perante a lei - ademais falso, pois o deputado nunca disse isso, mas isso não vem ao caso.

Lincoln usa a sujeirada comum da política (mentiras, sofismos, populismo, nomeações de cargos e outros atos menos nobres, até mesmo coação) para conseguir ao que parece ser seu intuito principal, que era acabar com aquela guerra “pestilenta”. Sim, há discussão ética sobre os meios que o presidente fez para conseguir o resultado, mas entra o piano de John Williams, seguido de suas marchinhas militares, e uma sufocante grandiloquência que Spielberg confunde com a própria ideia de direção de um filme.

A pior indulgência do filme é o papel da esposa de Lincoln, interpretada sofrivelmente por Sally Field. Aqui os vícios de Spielberg estão todos de volta, com cenas desnecessárias, diálogos reiterativos dizendo exatamente o que se vê na tela, exageros visuais e sentimentalismo. O filme sofreu inúmeras críticas históricas, e entre elas está o fato de que Mary Todd Lincoln nunca ter acompanhado os debates, mas há pelo menos uma dúzia de imagens de Sally Field nas galerias, acompanhada da criada negra, incluindo inúmeros takes contando voto a voto a vitória da emenda. Ela também se esborracha no chão às lágrimas implorando ao marido para evitar que o filho deles fosse para a guerra. Ela exigindo ser chamada de “Madam President” e reclamando de ser investigada pelas despesas na Casa Branca é a cena mais embaraçosa do filme, assim como o lamentável final – o elíptico assassinato do presidente – e a reedição da cena da menina do vestido vermelho de A Lista de Schindler (Schindler's List, 1993).

A degringolada deixa a dúvida se é Spielberg incapaz de fazer uma crítica política eficaz ou se foi o gênero que morreu mesmo, pressionado pela conjuntura econômica que restringiu bastante o fazer cinematográfico recente. Como se vê, Lincoln é um filme engajado, bem intencionado, bem feito, pertinente e articulado, mas nunca satisfaz. A impressão é de que esse tipo de obra não é capaz de competir com os documentários (cada vez mais em voga hoje em dia) e a internet, que conseguem ir muito além, de forma que Spielberg parece um amolfadinha sem inflexão intelectual suficiente para levar a cabo um projeto ambicioso como foi o de Lincoln.

Afora todo o arsenal técnico, como a fotografia Janusz Kaminski, e a interpretação de Daniel Day-Lewis, essas simplificações todas hoje soam insultante para o espectador mais exigente. Exemplo: nos debates ocorridos na época, deputados não podiam discutir uns com os outros, apenas se dirigir ao presidente da Casa, de forma que todas (ênfase em TODAS) as cenas mostradas dos “acalorados” debates são falsas. As personagens dizem “shit” and “fuck” em 1865.

É um paradoxo: a sociedade da informação não comportaria mais esse tipo de reducionismo – mas a sociedade do espetáculo adora esse tipo de mistificação. Não há comprometimento em se fazer uma obra honesta sobre um personagem histórico controverso sobre um assunto difícil. Há espetáculo: fala-se sempre em prêmios para esse tipo de filme. Ou seja, um filme do Oscar. Por mais que o roteiro seja sólido e flerte com alguma densidade, Spielberg está lá para aliviar tudo, fazer concessões e tornar tudo palatável e de fácil compreensão.

Não é má vontade em relação ao cinema de Spielberg: quando não faz filmes históricos, o cineasta é bom, como em Tubarão (Jaws, 1975), ET – O Extraterrestre (E.T. The Extra-Terrestrial, 1982), a série Indiana Jones e até mesmo Minority Report - A Nova Lei (Minority Report, 2002) e Inteligência Artificial (A.I. Artificial Intelligence, 2001). No terreno livre da ficção, não há amarras. Mas seus filmes históricos tem um ar de produto barato, apelativo. A beleza e técnica exuberantes acentuam a superficialidade. As derrapagens piegas incomodam e estão lá como para avisar: estamos diante de uma obra de segunda categoria, ávida pelos prêmios e alimentada pelas futricas da Era das Celebridades.

Lincoln irrita por sua perfeição. É vazio porque o que diz já foi dito mil vezes. A maneira como foi dito também não é original. Impossível cobrar isso de Steven Spielberg, é fato. Impossível também lhe dar crédito a mais do que de um correto artesão, infelizmente, por essa obra. Talvez seja a época: alguns anos antes, ele seria considerado um grande intelectual. Mas hoje filmes como Lincoln são menores. Enfim, Spielberg está fazendo filmes com 30 anos de atraso, o mesmo cinema pela qual se insurgiu na metade dos anos 70.

Comentários (50)

Cristian Oliveira Bruno | sexta-feira, 29 de Novembro de 2013 - 13:31

Eu não sei o que esparava-se de um filme sobre Lincoln. Era óbvio que seria lento e arrastado. É um filme sobre política e baseado 100% em diálogos. E se esses diálogos são banais, risíveis, deslocados, apelativos ou desnecessários, Spielberg dá uma aula de como filmá-los. Se é um filme para americanos? Sim, e daí?? Cidade De Deus e Tropa De Elite são filmes para brasileiros e nem por isso são filmes que não possam ser apreciados por outros países e outras culturas (embora ambos sejam mil vezes melhor que Lincoln). O problema de Lincoln, que é um bom filme, é a busca desesperada de seu diretor pelo filme perfeito para o Oscar. Ainda prefiro Spielberg em sua essência, mas o telento ele não perdeu.

Marlon Tolksdorf | quinta-feira, 02 de Janeiro de 2014 - 15:30

aff pq Demetrius sempre tem que fazer críticas para os filmes do spilberg?
Espero que saia outra. [2]

SOLICITO UMA SEGUNDA CRÍTICA POR FAVOR
GRATO [2]

David Nascimento | quarta-feira, 18 de Março de 2015 - 05:09

Lincoln é um dos mais importantes políticos da história. Acreditava que o filme tinha potencial antes e após o término do DVD me agradou bastante. O que realmente desanima são as discrepâncias historiográficas. Penso que a obra é interessante para instigar o interesse das pessoas com relação a história e aos mecanismos de um poder legislativo, temas muito bacanas.

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