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Críticas

Cineplayers

A tênue linha da invisibilidade social.

9,0

Quantas são as chances de irmos ao cinema e espiar o dia-a-dia de vidas comuns, ao mesmo tempo em que vemos um painel amplo do país-Brasil ser montado com tanta lucidez? Aos menos atentos, Linha de Passe pode parecer apenas uma crônica da vida de uma família de 4 irmãos criados pela mãe, que no momento da ação espera a chegada do quinto filho, não sem sofrer a censura dos meninos que obviamente se preocupam com a chegada de mais um que precisará correr atrás de seus sonhos sem nenhuma garantia de que avistará a linha de chegada.

Empenhados por uma vontade iniciada com a parceria de Terra Estrangeira, Walter Salles e Daniela Thomas ciclicamente repensam o Brasil nas suas questões históricas e também nas urgências mais atuais. A consolidação de novos modelos de família e a luta pela sobrevivência diária na metrópole excludente são as mesmas situações que vemos camufladas em novelas das oito onde a mesa do café da manhã dos personagens menos afortunados representa uma fantasia de realidade que ridiculariza mais do que diverte. É bem diferente de vermos Cleuza (Sandra Coverloni) servindo o prato do filho enquanto os dois discutem, a carne chegando ao prato com a mão de raiva da mulher que mata vários leões por dia. Interessante que Sandra tenha ganhado o prêmio de melhor atriz em Cannes já que o verdadeiro personagem da história tem mais quatro pontas além dela, a mãe e seus quatro filhos formando uma unidade familiar contemporânea, ela sim o personagem completo e complexo que vemos ser desenhado nos conflitos individuais de cada um, na luta individual de cada um por pertencimento e aceitação, inserção social, a busca pelas raízes paternas, tudo finalmente entendido como a necessidade de vinculação, essa palavra perdida em cujo sumiço se esconde a depredação das relações humanas.

Desvinculados por vários fatores, seja de ordem social, geográfica ou monetária, Denis (João Baldasserini), Dario (Vinícius de Oliveira), Dinho (José Geraldo Rodrigues) e Reginaldo (Kaique de Jesus Santos, uma revelação e tanto) transitam pela cidade em busca de seus lugares. Nas viagens de Denis em sua moto a câmera e a montagem surpreendem com perspectivas quase verossímeis, e é dele também a cena que mais impressionou, quando ele tira o capacete e pergunta ao interlocutor rico e perdido: Cara, você tá me vendo? A explicitação do drama de ser invisível costurando todas as pontas do filme. Reginaldo, o filho mais novo, se envolve nesse drama ao escolher enxergar o pai em um motorista de ônibus para fugir da visível diferença que o separa dos irmãos pela cor da pele. Dinho prefere a via da resignação religiosa, via essa que não consegue lhe amparar na hora mais difícil de seu personagem. Dario, o orgulho da mãe corintiana não desmerece o nome de craque, mas tem o talento ignorado por uma verdadeira indústria de atletas na qual ele não consegue se encaixar apesar de tudo. Uma boa cena de Dario é a da falsificação da identidade, quando ao câmera foca a carteira sendo copiada e deixa em destaque a imagem do ator Vinícius, que na foto do documento é exatamente aquele garoto que conhecemos em Central do Brasil. Uma óbvia e sutil referência.

Congregando os quatro personagens, Cleuza trabalha contra o ritmo em que flui a sua vida com a mesma dificuldade com que lida com uma pia entupida, na árdua tarefa de manter visível a linha que liga cada um dos filhos ao pertencimento de grupo, de família. A simplicidade de sua interpretação sem afetações constrói a verdade fantasiosa de uma mulher real, que mesmo grávida transita por todos os espaços, o trabalho, o bar e o estádio de futebol lotado. E essa mesma gravidez, demonstração de uma vida sexual ativa, é o signo da feminilidade escondida sob a aparência descuidada de quem não tem tempo para vaidades e completa o universo de significações da personagem como mulher-total. E sob essa constatação é que Sandra Coverloni merece destaque pela construção de um personagem redondo que impressiona por quase não parecer um personagem ou parte de algo ficcional.

Os desfechos de cada um dos cinco parecem ressaltar isso, com finais de uma poética da realidade para todos, menos para Cleuza e Denis que são os dois personagens que caracterizam a maturidade em detrimento da juventude presente em Dario, Dinho e Reginaldo. Como se a concretude da vida tivesse tirado de Cleuza e Denis a capacidade de perseguir sonhos, por mais concretos que eles sejam.

Assim a parceira Walter Salles e Daniela Thomas deixa mais uma boa marca no cinema nacional, sem apelar para as velhas armadilhas do pitoresco, criando uma história cuja mensagem é universalmente inteligível. E mais uma vez, salvas a Sandra Coverloni e Kaique de Jesus Santos que formaram a dupla mais entrosada nessa bela linha de passes.

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