Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Para ver, pensar e se emocionar.

8,5

Lixo Extraordinário começa seu documento histórico apresentando o artista plástico e fotógrafo brasileiro Vik Muniz em entrevista concedida por ele ao Programa do Jô, o que se mostrou um interessante recurso narrativo que permitiu substituir o off explicativo por uma apresentação mais diegética daquele que parecia ser o personagem principal do documentário.

Apenas parecia. O longa-metragem, na verdade, mostra o processo de criação – no campo das ideias – do artista brasileiro enquanto ele define seu novo e audacioso projeto: retratar a realidade dos catadores de material reciclável do Jardim Gramacho, localizado em área extremamente carente do Rio de Janeiro. E assim, percebe-se que o personagem principal não será Vik e também não será no singular, serão as pessoas que separam todo o lixo do maior aterro sanitário do mundo.

Desse modo, o documentário aborda não só o trabalho de Vik, mas também o poder transformador da arte, capaz de alterar não só a realidade das pessoas, mas ainda a percepção de mundo que elas têm. Logo no início do filme, aqueles que são considerados o nível mais baixo da pirâmide social surpreendem ao mostrar a felicidade e o orgulham que sentem por trabalhar de forma digna, o que já serve como um choque de realidade impactante – e capaz de alterar as percepções do espectador.

O que talvez seja o único problema de Lixo Extraordinário é o fato de as discussões de Vik com seu parceiro de criação – e também com sua esposa – se estenderam para além do necessário em certos pontos, já que o mais interessante são mesmo os catadores e suas histórias (frustrações e anseios) divididos com sinceridade com a plateia. Além disso, por ser dirigido pela inglesa Lucy Walker, com co-direção dos brasileiros João Jardim e Karen Harley, estas conversas íntimas dos criadores do projeto ocorrem em inglês, mesmo com a língua materna dos envolvidos sendo o português. Fora isso, o documentário é genuinamente brasileiro e falado em sua maior parte em português.

Quanto mais a realidade dos catadores do Jardim Gramacho é apresentada, mais interessante se torna o documentário que, engajado inicialmente em um retrato social crítico, com o passar do tempo mantém esse tom ao mostrar o poder transformador da arte na vida daquelas pessoas. E se até meados do longa o público era convidado a refletir sobre a questão da marginalização daquelas pessoas, absolutamente excluídas da sociedade, depois de sua metade passa a, inevitavelmente, emocionar-se com a transformação que a cultura traz para aquela comunidade.

Os catadores não são apenas objetos para belas fotografias artísticas de Vik em meio à sujeira, mas passam também a serem autores das obras ao darem os contornos necessários – sempre com material retirado do lixo – as suas próprias imagens ampliadas no chão e, posteriormente, fotografadas de cima por Vik. Assim, a emoção daquelas pessoas humildes ao verem o resultado de seus esforços e perceberem suas capacidades intelectuais para produzir, e até mesmo interpretar a arte, é facilmente dividida com o público que, em privado, inevitavelmente pensa que é hora de rever certos conceitos sobre a importância da cultura e os efeitos da exclusão social que leva ao desperdício de talentos.
 
Sem querer contar muito mais para não estragar as reações naturais diante de situações comoventes, revoltantes e admiráveis, basta dizer que Lixo Extraordinário é um aula de humanidade. E assim, o final semelhante ao começo, mas desta vez como outro personagem na poltrona do Jô, torna-se admirável por mostrar a capacidade daquelas pessoas que, no começo, pareciam ter pouco a contar. Com apenas uma frase, o representante dos catadores no programa global mostrou que eles, graças às ambições de Vik, não podem mais ser encarados como subprodutos da sociedade. Merecem ter orgulho de serem catadores de lixo reciclável e de toda a capacidade intelectual que possuem.

Se Vik já cumpriu sua ambição de transformar a vida dessas pessoas com a arte do mesmo modo que a sua própria vida foi alterada por ela, seu projeto ainda não está acabado. Apesar dos milhares de reais doados à associação dos catadores por meio das vendas de suas obras de arte, o que permitiu melhorar a vida não só dos personagens do filme mas também de todos os catadores do Gramacho, este sonho de transformação pode ser ainda ampliado.

Os catadores estão agora mundialmente famosos – e o mais importante, conhecidos em seu próprio país – com a indicação ao Oscar de melhor documentário. Mesmo com a co-produção Brasil/Inglaterra, e com passagens em inglês, este é, sim, um documentário com cara e alma brasileiras e quem sabe o brilhante trabalho de Vik e dos catadores, já reconhecida no meio artístico, não ganhe também o prêmio máximo do cinema, ampliando a visão de que a qualidade intelectual do brasileiro está em todos os cantos deste país, só que sendo diariamente jogada no lixo. Serão, tomara, os renegados de nossa sociedade classicista os primeiros a darem ao Brasil o rótulo de vencedor do Oscar.    

Comentários (0)

Faça login para comentar.