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Críticas

Cineplayers

O ser e o meio.

7,5

O cinema oferece diferentes formas para se contar histórias. Em Locke, há uma limitação espacial audaciosa e a presença de um único personagem. Ivan Locke está dirigindo por uma estrada a noite, com um compromisso imprescindível para a manhã seguinte. Ele recebe um telefonema e tudo muda. Todas as conquistas de uma vida são postas em evidência e suas escolhas determinarão um futuro que lhe é incerto, tal como a estrada a sua frente, tal como o tempo de deslocamento até o lugar que precisará, por escolha, estar. Imerso numa noite de incertezas, Ivan se delonga e nós o acompanhamos nesse percurso, frente à iluminação noturna, sequenciais ligações de pessoas diferentes e metáforas da própria estrada e suas conversas com ausentes.

Locke explana um personagem preso a uma noite de descobertas. Tom Hardy protagoniza e naturaliza as emoções. Devo dizer que Hardy é um ótimo ator ainda não reconhecido como merece. Ele chora, ele grita, ele soca o volante, ele extravasa e o carro se torna uma extensão de seu corpo que retrata emoções, juntamente às vias, símbolo cultural de caminhos; junto à noite, tal como sua ação, obscura. O carro funciona como um personagem objetal. Hardy nos comove preso num curtíssimo espaço físico, fazendo uso de poucos recursos cênicos para entregar uma performance tocante e equilibrada.

Seu personagem, Ivan, é um engenheiro que trabalha no ramo da construção de edifícios. Ele está responsabilizado pela maior entrega de concretos na Europa, marcada para a manhã seguinte a essa noite. É algo pelo qual decidiu abrir mão. Há alguns diálogos técnicos sobre tal ramo, sobre o concreto, sobre a importância do alicerce e o dano colossal que uma minúscula espessura – um erro banal – pode causar no todo arquitetado. É o principal símbolo referente a constituição de uma vida sólida que o filme dá. Ivan tem um bom emprego, filhos, esposa, um belo carro e casa, e iria assistir a uma partida de futebol numa noite comum, alimentando o sonho já realizado. No entanto, a espessura descoberta, inconveniente, então, faz ruir a construção de uma vida.

E não se mede vidas. Se almeja conquistas. Não há padrões matemáticos que deem conta de garantir sucessos, já que independe do físico. A implicação psicológica na conduta do sujeito que acompanhamos num curto período em uma noite desastrosa é um advento bem esmiuçado pelo roteiro, trabalhado com exatidão no sentido de não deixá-lo previsível. Seres humanos, essencialmente, não os são. Satisfatório, também, é o cuidado no esboço do contexto, permitindo simbologias para dimensionar um personagem cuja vida é desconhecida por nós. Custa ter empatia por aquilo que não conhecemos, então o recurso é outro: a empatia por saliência. Nos construímos ao longo da história através das diferentes culturas e ingerências midiáticas, o suficiente para nos sensibilizarmos com projeções pessoais. A condição de realidade favorece nossa relação com a imagem.

O diretor Steven Knight promove um drama bastante sentimental sobre um homem considerado íntegro – de acordo com questões tratadas ao longo de suas conversas ao volante – e que repentinamente toma decisões que por vezes nos são contraditórias. É o resultado de um considerado erro, é o resultado de uma ação. As escolhas que fazemos diariamente determinam o futuro, mas não é essa a lógica trabalhada nessa narrativa de ocasião. Aqui o que vale é o momento e o momento é pura indagação, tanto do personagem que acompanhamos quanto de nossas inevitáveis considerações a cerca da representação projetada no limitado espaço dentro do veículo. O tempo é corrente e exerce papel fundamental na narração. O tempo, aliás, dita o ritmo dela. Não à toa, além de informação lógica, o tempo é contado enquanto conjunção para o que Ivan decidiu presenciar.

O campo demarcado ganha contornos artísticos através de planos distintos que ressaltam, quase que sempre, o sentimento pelo qual Ivan está passando naquele instante. As retratações surgem como metáforas, seja nas condições da estrada, nos planos abertos que evidenciam algum tipo de solidão, no velocímetro, nos faróis, nos carros que passam ao lado, na iluminação que assombra ou nas conversas que surgem involuntariamente, como a que tem junto aos filhos sobre futebol, especialmente referente a um atacante sempre criticado cujas características assemelham-se a suas decisões momentâneas. Há ainda uma consideração sobre sanidade quando ele conversa com a memória de alguém que aparentemente persiste em sua vida enquanto um fantasma. O fantasma não reage, mas tem fundamento.

A realidade nada branda transposta no roteiro estremece valores, passando por uma consideração subjetiva de seu público, inevitavelmente solidário a condição desse homem decidido a bancar seus erros. O problema é que tais erros não se restringem unicamente a Ivan, atinge toda uma rede de pessoas, infringindo dinâmicas de relações e princípios éticos. Haja consciência. É uma noite lancinante pelas estradas inglesas, tão pungentes que a experimentamos através da projeção com nossos íntimos valores. Sinal que o filme funciona. E mais, apesar de suas limitações cênicas, a obra é suave, resultado da competente montagem e intervenção do jovem diretor. Locke é uma submersão num processo de responsabilização, algo definitivamente admirável por parte de seu protagonista cujo custo das escolhas são cruéis.

Comentários (4)

Gustavo de Souza Silva | quinta-feira, 19 de Março de 2015 - 14:45

Este filme me foi uma baita de uma surpresa. Filmado de um modo tão... simples, ele mostrou-se tão envolvente. Tem momentos até em que me imaginei no lugar do Ivan, perguntando-me se eu aguentaria aquela pressão toda que o carcava. rs

Tiago Cavalheiro | domingo, 22 de Março de 2015 - 23:23

Roteiro muito bom, atuação de Tom Hardy Excelente. Talvez tenha faltado um Gran-Finalle. Mas no conjunto da obra/execução do filme realmente vale a pena conferir.

Guilherme Novello | segunda-feira, 23 de Março de 2015 - 14:53

Realmente Tom Hardy está muito bem, e muito bem dirigido. Levando em conta que o estímulo ao ator nesse caso é mínimo, é quase um exercício de teste de elenco!

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