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Críticas

Cineplayers

Uma delicada história sobre os meandros e dificuldades do amor, mesmo quando maduro.

8,5

É difícil imaginar ao ver as primeiras cenas de Longe Dela que Fiona (Julie Christie) esteja "começando a desaparecer", como ela mesma diz. Sua vida junto com o marido Grant (Gordon Pinsent) parece tão tranqüila e ao mesmo tempo ativa, incluindo passeios na neve, leituras e jantares. Tudo muito agradável, até o momento em que uma frigideira vai parar no freezer e o sinal vermelho é ativado: algo de errado está começando.

Impressiona também perceber a determinação da personagem em internar-se numa clínica para tirar do marido a grande responsabilidade que é cuidar de uma pessoa com Alzheimer, ao mesmo tempo em que a perda da memória vai aos poucos denegrindo as certezas do passado, e conseqüentemente os laços familiares. Até uma piadinha com a própria condição de esquecida ela se dá ao luxo de fazer, de tão segura e consciente de sua nova condição. Na cena em eles vão ao médico procurar entender o que realmente está se passando com ela, percebam a interpretação da atriz. Claro e óbvio que se trata de uma interpretação, já que temos ali a representação de um personagem. Mas notem cuidadosamente algo a mais nessa cena. Algo que remeta à idéia de uma interpretação dentro da interpretação. E não direi mais nada para não comprometer as surpresas que virão.

É assim que Fiona entra na clínica, despedindo-se de Grant sem muitas delongas, depois de 44 anos de um casamento nunca interrompido por sequer um mês de separação. E um mês é o tempo de adaptação ao lugar, pré-determinado em contrato. Um tempo em que ambos precisarão manter-se afastados para que ela não se perturbe com as idas e vindas do marido, ao passo que ela ficará sempre lá, talvez sem entender o que se passa.

Muito diferente disso, ao retornar à clínica depois do tempo previsto, o que Grant encontra é realmente perturbador: sua Fiona entretida num jogo de cartas ao lado de outro homem. Ao perceber que ela até o reconhece sem, no entanto, fazer grande questão dele, é aí que se instala o drama de Grant, através de cujo olhar saberemos e ouviremos o desenrolar dessa história.

Fazendo uma reflexão sobre o resultado do Oscar, agora entendo os que disseram que Marion Cotillard poderia perder sua estatueta para o talento e experiência de Julie Christie: numa atuação impecável ela reproduz com grande habilidade o papel da mulher de temperamento único e beleza viva que é Fiona Anderson, aquela cujo declínio nem nós e muito menos Grant podemos aceitar como dado, como algo natural. Cheia de vida e mesmo doente ela mantém sua docilidade e firmeza originais, desviando seu afeto a Aubrey, interpretado por Michael Murphy, também muito digno no papel de coadjuvante.

E é através dele que entra na história a personagem de Olympia Dukakis, numa das melhores interpretações que já vi da atriz. Ela interpreta Marian, a esposa de Aubrey, que de alguma forma consegue construir um personagem quase oposto ao de Fiona: uma mulher cansada e prática, com menos brilho e glamour do que a protagonista, mas ainda assim tão interessada pela vida quanto ela.

E se foco minhas atenções a falar de maneira mais detida a respeito das interpretações é porque são delas a importância maior dentro da história, um filme conduzido como suporte às interpretações, exigindo portanto que delas fosse extraído o melhor. Li inclusive que Sarah Polley, a jovem e competente diretora e roteirista, adaptou o conto de Alice Munro (The Bear Came Over the Mountain) especificamente para a atuação de Julie Christie, com quem havia trabalhado antes em A Vida Secreta das Palavras, de 2005. Só para situar, Sarah Polley é bem conhecida pela protagonista de Minha Vida Sem Mim e ambos os filmes, (Minha Vida Sem Mim e A Vida Secreta das Palavras) foram dirigidos pela catalã Isabel Coixet. Sendo assim e por sua experiência como atriz, Polley pôde-se valer de uma sensibilidade mais aguçada, assim como de generosidade suficiente para focar a beleza de seu filme de estréia justamente nas interpretações.

Delicado até na construção da fotografia, dos diálogos e mesmo dos silêncios, é um filme de ótimos personagens e atuações cativantes, com o qual é impossível não se emocionar ao menos em uma cena. Ainda em se tratando de um filme de estréia, considerando-se a juventude da diretora de 29 anos e a experiência dos atores com os quais estava lidando, é lógico que devemos dar crédito a Sarah Polley. Por isso e por sua história, Longe Dela é um filme que recomendo.

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