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Críticas

Cineplayers

A cidade dos anjos – ou dos demônios? – em um dos grandes filmes dos anos noventa.

10,0

Certos gêneros cinematográficos estão invariavelmente associados a uma época. Tomemos o noir, por exemplo. Erigidos a partir dos resquícios do expressionismo alemão, os filmes que acabaram por definir o segmento apareceram pela primeira vez e viveram seu auge nos anos 40 e 50, em produções como Relíquia Macabra (The Maltese Falcon, 1941), Pacto de Sangue (Double Indemnity, 1944), O Segredo das Jóias (The Asphalt Jungle, 1950) e A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958). Nas décadas posteriores, tornou-se raro ver roteiristas e cineastas voltando às histórias dos detetives cínicos, das femme fatales e da decadência urbana que caracterizava tais produções. No entanto, mesmo que jamais tenha havido uma ressurreição propriamente dita do gênero, o noir ocasionalmente dá as suas caras, como foi o caso com Chinatown (idem, 1974) e, mais recentemente, com o espetacular Los Angeles – Cidade Proibida (L.A. Confidential, 1997).

Universalmente aclamado como um dos grandes filmes norte-americanos dos anos 90, a produção dirigida por Curtis Hanson trouxe para as vésperas do milênio todos os elementos clássicos do gênero: os heróis que estão longe de serem verdadeiros mocinhos, a moral duvidosa, a história repleta de reviravoltas envolvendo corrupção e traições, a sedutora mulher que mexe com a cabeça de todos, a cidade revelando o seu lado podre e, claro, o estilo visual que abusa de sombras e contrastes para ressaltar a natureza ambígua daqueles personagens. Los Angeles – Cidade Proibida apresenta todas essas características e ainda acrescenta outras à mistura, revelando-se não apenas um impecável exemplar do gênero noir, mas também – e principalmente – um grande filme por si só.

Escrito pelo próprio Hanson em parceria com Brian Helgeland, a obra tem início com uma precisa narração em off do personagem de Danny DeVito, apresentando em poucas palavras a imagem de uma cidade de plástico, onde, por baixo da aparência de glamour vendida pelo cinema e pela publicidade, algo de podre começa a remoer as suas entranhas – ou, como o próprio personagem diz: “Há problemas no paraíso”. A partir destes poucos segundos, fica claro ao espectador que Los Angeles – Cidade Proibida terá um grande personagem além daqueles outros que serão apresentados no decorrer da trama: a própria cidade que dá nome à obra e toda a decadência moral que existe nela, mesmo que essa podridão não chegue às manchetes de jornais e revistas.

E a “cidade dos anjos”, mais especificamente seu quase sempre escondido lado putrefato, é parte fundamental do projeto de Hanson e Helgeland. Com uma recriação de época impecável, que ajuda a tornar legítima toda a experiência, a trama circula com naturalidade pelas mais diversas esferas, exibindo a feiúra adjacente a cada uma delas: o político envolvido em corrupção, a imprensa disposta a fabricar mentiras, a Hollywood capaz de destruir vidas e, obviamente, a polícia mais interessada em preservar a sua própria imagem do que proteger os cidadãos. A Los Angeles do filme não é uma cidade capaz de realizar sonhos, mas um lugar amaldiçoado, destinado a despir a essência de cada um de seus moradores, transformando-os em vítimas de todos os seus vícios e armadilhas – exatamente o que acontece com os três protagonistas.

Eis aí a grande força de Los Angeles – Cidade Proibida: seu roteiro e, consequentemente, a construção de seus personagens. Exemplarmente construído, capaz de servir como referência a acadêmicos da área, o enredo do filme segue uma estrutura clássica, sem saltos temporais ou truques narrativos. Os primeiros minutos, por exemplo, têm o singular objetivo de apresentar ao público os três personagens principais, e o faz de forma louvável, em um trio de cenas que informam todo o necessário para levar a plateia a conhecer e a se interessar por eles.

Tomemos Bud White, para começar. Quando aparece pela primeira vez na tela, ele está de tocaia em frente a uma casa na qual um homem maltrata uma mulher. Sem hesitar, alheio aos comentários do parceiro, o policial entra na casa e espanca o homem, salvando a mulher, a quem trata com cortesia e gentileza. Em poucos segundos, o público sabe quem é White: um policial com temperamento explosivo e provavelmente não muito inclinado ao raciocínio e à sutileza, que possui um claro ódio de homens que abusam fisicamente de mulheres.

Logo em seguida, Hanson apresenta o midiático Jack Vincennes. Garboso, com um sorriso autoconfiante no rosto, o policial surge em meio a uma festa no set de um programa de TV armando um esquema com o jornalista de um tablóide, momento no qual, obviamente, exige a sua parcela financeira no obscuro negócio. Os realizadores, portanto, deixam óbvio ao espectador que Vincennes se trata de um policial corrupto, que adora o seu status de celebridade e parece disposto a qualquer atitude para se manter em tal posição.

Finalmente, aparece o Ed Exley, o almofadinha. Apresentando-o com o cabelo penteado à perfeição, óculos no rosto e uniforme impecável, Hanson e Helgeland precisam apenas de duas conversas rápidas – uma com a imprensa e outra com seu chefe – para esclarecerem que é aquele homem: um policial correto, seguidor das regras, que busca a justiça unicamente se ela for alcançada dentro da lei e que está seguro de sua capacidade de fazê-lo.

Neste instante, não se passaram nem dez minutos de filme e Los Angeles – Cidade Proibida, em uma aula de precisão e economia narrativa, já apresentou seus três protagonistas para o público, solidificando as bases para tudo o que virá em seguida. E o melhor de tudo é que, em momento algum, nos quase 140 minutos de filme, o roteiro distorce o que foi apresentado nesse início, sendo capaz de manter a lógica e a essência dos personagens até o final, mesmo após tudo o que eles vivenciam e após todo o arco dramático pelo qual passam. A plateia jamais duvida de suas motivações ou das razões para cada uma das ações tomadas: todas, sem exceção, são justificáveis dentro do contexto da obra, da situação ou simplesmente do que se conhece de cada um dos personagens.

Essa lógica interna, por mais que pareça simples, é extremamente difícil de se manter. Incontáveis filmes acabam resvalando em conveniências de roteiro que, em prol de empurrar o enredo adiante, levam os personagens a realizar ações que não condizem com suas naturezas. Hanson e Helgeland são extremamente hábeis em fugir de tais armadilhas, sustentando de forma louvável essa coerência ao mesmo tempo em que encontram espaço para tornar White, Vincennes e Exley pessoas complexas, tridimensionais e de carne e osso. Los Angeles – Cidade Proibida não rotula seus personagens: não há o bom e o mau, o mocinho e o bandido. Todos os protagonistas têm suas virtudes e seus defeitos, suas qualidades e suas falhas, suas certezas e suas fraquezas. São humanos, oscilando para um lado e para o outro no meio do caminho. Mais do que isso, todos revelam suas camadas à medida que o filme se desenrola, mas nunca às custas daquilo que havia sido apresentado anteriormente. Uma verdadeira aula de construção narrativa.

Nesse sentido, outro aspecto que merece destaque é o fato de que os três não apenas são bem compreendidos pelo espectador como também passam por um arco dramático crível e desenvolvido majestosamente ao longo da história. White, Vincennes e Exley não encerram o filme como começaram. São os mesmos homens, porém mudados, influenciados pelo que viveram e pelo mundo corrupto que encontraram à volta. E, se existe um tema no cerne de Los Angeles – Cidade Proibida, esse é a corrupção – corrupção do governo, corrupção da mídia, corrupção da polícia e, acima de tudo, corrupção de si mesmo. Em momentos específicos da obra, cada protagonista se questiona sobre o que os levou a virarem policiais. A resposta é nebulosa: White acha que sabe (o passado com seu pai), Vincennes diz que não se lembra e Exley diz que sabe, mas que essa certeza se perdeu no caminho. Em algum ponto dessa jornada, os três se perderam e se corromperam, se não com a Lei, pelo menos consigo mesmos.

Mas não há redenção para eles. Não é isso o que Hanson e Helgeland buscam alcançar. Los Angeles – Cidade Proibida, com seu cinismo e sua sujeira, não é um filme destinado a um final feliz ou à resolução total dos conflitos que afligem cada uma dessas difíceis personalidades. Não há glamour na história, e nem poderia haver, uma vez que não há glamour na vida daquelas pessoas. O único resquício de sofisticação que existe – a ilusão vendida por Lynn Bracken – é uma imagem etérea, dissolúvel e enganosa. O diretor, especialmente, trata cada questão do filme dessa maneira, sem afetações, sem excessos. Ciente da força do roteiro que tem em mãos, Hanson opta por não aparecer, limitando-se a uma mise-en-scène eficiente em sua discrição e no cuidado com detalhes que podem passar despercebidos. É interessante reparar, por exemplo, como o cineasta posiciona Ed Exley em uma determinada cena passada na sala de reuniões na polícia: o jovem tenente surge no canto inferior esquerdo da tela, sem qualquer destaque, mas é o único sozinho à mesa, indicando o desprezo de seus colegas por suas atitudes. Hanson evita inserir um plano específico para ressaltar esse aspecto, preferindo um caminho mais arriscado, embora louvável: a crença na capacidade de percepção e na inteligência da plateia.

Isso vale também para suas opções ao construir um novo exemplar do noir. Sim, trata-se de um filme do gênero, mas com um viés moderno, realizado quase meio século após as produções que o definiram. Assim, a escolha por fugir do preto e branco se justifica, traçando um paralelo entre aquela época e o mundo atual, levando a uma construção de significado mais interessante. No entanto, Hanson não deixa de lado os elementos visuais que caracterizam o noir: os resquícios da luz do sol entrando em uma sala por meio das persianas e as sombras tomando metade dos rostos dos atores são dois exemplos de clássicas soluções estilísticas de filmes da época, que tanto homenageiam os clássicos quanto ajudam a transmitir a sensação de ameaça daquele universo e daqueles personagens.

Mas os acertos do trabalho de Curtis Hanson não param por aí. Se a própria trama é conduzida sem exageros habituais, o mesmo vale para as cenas de violência: os tiroteios e as brigas surgem sempre de forma seca, rápida, séria. A tensão é constante e crescente, como se percebe na impecável cena na sala de interrogatório. Mais do que isso, e a sensação de que algo está prestes a explodir jamais desaparece e, quando essa violência realmente explode, é de modo cru, visceral e, principalmente, capaz de deixar marcas indeléveis – físicas ou psicológicas – nos personagens. Com isso, Hanson traz mais um aspecto humano à história, tornando tudo aquilo mais real, mais verdadeiro, distanciando ainda mais seus “mocinhos” dos heróis indestrutíveis comuns no cinema.

Mesmo com essa condução precisa, a escolha mais louvável de Hanson talvez seja realmente a de se afastar e deixar brilhar o roteiro de Brian Helgeland. Sem medo de alterar quando necessário o texto original do livro de James Ellroy, o roteirista equilibra magistralmente a já referida construção dos personagens com o próprio desenrolar da trama, fazendo com que uma complemente a outra. Helgeland trabalha todas as tramas, as jornadas pessoais e o enredo principal como algo orgânico, que realmente faz parte da mesma história. Tudo o que se vê em tela tem um propósito. Um detalhe do início vai se encaixar no final. Uma linha de diálogo será lembrada mais adiante. Um pequeno item do cenário pode ajudar a compreender as ações de um personagem. Não há um único frame desperdiçado, o que faz de Los Angeles – Cidade Proibida uma obra dinâmica e ágil, mesmo com mais de duas horas de duração.

O grande número de detalhes e de temas desenvolvidos obriga a plateia a ficar sempre atenta se quiser acompanhar o enredo. Um piscar de olhos ou uma olhada no relógio (não que haja vontade de fazer isso) podem levar à perda de alguma questão que se fará importante depois. Da mesma forma, os diálogos de Los Angeles – Cidade Proibida são construídos de maneira inteligente e, especialmente, adequada ao universo da cidade decadente que se vê em tela. As palavras que saem da boca dos personagens são repletas de desprezo, de egoísmo, de cinismo. Elas possuem um grau de dissimulação, como se fosse difícil saber em quem confiar. Ainda assim, nenhuma linha de diálogo surge unicamente como conveniência de roteiro; são, ao contrário, frases e pensamentos que realmente teriam sido formulados e ditos por aqueles personagens naquelas situações específicas. E, acima de tudo, são entregues pelo elenco com essa consciência e essa precisão.

Aliás, Los Angeles – Cidade Proibida deve muito de seu sucesso aos atores. Kevin Spacey, por exemplo – que, à época do lançamento, era a única verdadeira estrela do grupo – interpreta Vincennes com um tom de superioridade e canalhice que revelam a arrogância do policial, mas jamais esquece do carisma necessário tanto para o personagem quanto para a plateia estabelecer uma identificação com ele. Enquanto isso, Russel Crowe exibe aqui um dos grandes trabalhos de uma carreira laureada, deixando transparecer a vulnerabilidade emocional e a fraqueza contidas em um personagem que, à primeira vista, nada mais é do que um bruto irracional. Fechando o trio, Guy Pearce talvez tenha a composição mais difícil de todas, especialmente pelo fato de que Exley é o personagem que mais muda ao longo da trama, tarefa que o ator tira de letra. E não deixa de ser louvável a dedicação deles aos pequenos aspectos que formam um personagem, como a gravata colocada para dentro da calça de Vincennes ou a respiração ofegante, nervosa, de Exley após enfrentar seu primeiro tiroteio e ter tomado um choque de realidade em relação a todos os seus princípios, finalmente compreendendo que a violência, naquele mundo, não é somente inevitável, mas fundamental.

Os demais atores fecham com chave de ouro um dos elencos mais eficientes formados nas últimas décadas. Dona do único Oscar de interpretação recebido pela produção, Kim Basinger pode não estar no mesmo nível do seu trio de protagonistas, mas compõe igualmente uma personagem muito mais profunda do que uma primeira visão pode mostrar: fria e distante, misteriosa e ambígua, Lynn Bracken é a representação da Los Angeles destruidora de sonhos, uma mulher desiludida, que chegou à cidade com o desejo de ser uma estrela de cinema e terminou como prostituta, interpretando exatamente aquelas celebridades que tanto admirava. Além dela, Hanson também demonstrou inteligência ao escalar James Cromwell em um papel completamente diferente do adorável velhinho que havia recém interpretado em Babe – O Porquinho Atrapalhado (Babe, 1995), sem contar um Danny DeVito extremamente à vontade como o símbolo da fraqueza moral da imprensa hollywoodiana.

Trazendo à tona ainda a perene discussão sobre o papel do herói e sobre o que é verdade e o que é mentira no que é passado ao público, Los Angeles – Cidade Proibida é um daqueles raros casos onde tudo dá certo em uma produção, onde cada aspecto se encaixa para formar um filme capaz de crescer e se tornar ainda mais forte com o decorrer dos anos. De quebra, apresenta uma visão nada lisonjeira da capital do cinema, exibindo sua face oculta e condenável como poucas obras fizeram antes. É como diz um dos personagens em determinado momento: “Essa é a cidade dos anjos e você não tem asas”.

Talvez não. Mas temos, ao menos, este grande filme para compreendê-la.

Comentários (14)

Patrick Corrêa | domingo, 09 de Fevereiro de 2014 - 18:23

Eu gostei do filme, mas me lembro pouco e preciso rever, até pra aproveitar melhor a crítica.

Aparecido Zago | segunda-feira, 10 de Fevereiro de 2014 - 22:40

Boa crítica para um dos melhores filmes da década de 90.

Guilherme Santos | quarta-feira, 20 de Agosto de 2014 - 23:31

O roteiro é simplesmente incrível, prende a atenção de uma forma maravilhosa, mesmo quando conseguimos sacar a trama

Matheus Gomes | quinta-feira, 28 de Dezembro de 2017 - 23:18

Filmão, velho. Acabei de assistir!
PORÉM, Kim Basinger não merecia o Oscar, honestamente.

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