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Críticas

Cineplayers

A Itália revelada.

9,0

Dedicado a Roberto Rossellini e compartilhando a protagonista da obra-prima mais lembrada do diretor, Roma, Cidade Aberta (Roma, Città Aperta, 1945), Mamma Roma (idem, 1962) é o retrato de uma Itália que, após a Segunda Grande Guerra, teve de encarar a si mesma. Em seu segundo longa, o diretor egresso da poesia experimentava uma nova forma de cinema que, às luzes do neo-realismo italiano, contestava a linguagem clássica.

Mamma Roma, interpretada por Magnani, é uma prostituta de meia-idade que tenta mudar de vida ao trazer seu filho de dezesseis anos Ettore para a metrópole e começar uma vida nova como vendedora de vegetais na feira. Enquanto Ettore descobre a vida crescendo e tentando sobreviver a uma Itália que, após sobreviver aos traumáticos acontecimentos da década de quarenta, já não compartilhavam do mesmo sentimento altruísta de cineastas como Rossellini e Vittorio De Sica; a história de resistência de Roma Cidade, Aberta contra um mal maior – que vitimava Magnani no final das contas, assim como religiosos e comunistas – agora torna-se uma luta meramente por sobrevivência, onde Pasolini faz uma crônica desmontada da marginália e da delinquência: o lado ignorado de Roma vem à tona em um mundo onde conceitos como conforto, estabilidade e segurança são apenas sonhos dos personagens capturados pela câmera: prostitutas, cafetões, vândalos, bêbados e miseráveis.
 
Pasolini faz um filme sem progressão psicológica e dramática clara; sua dramaturgia é antes desmontada em episódios que, distanciando-se da narração de uma saga, do envolvimento através da paixão: o recurso do distanciamento ao invés de minar o potencial humanista da obra, antes acrescenta ao mesmo. Mamma Roma não julga se seus personagens estão certos ou errados. A decadência não é determinista quanto é íntima, pessoal e subjetiva. Não se da apenas pelas condições miseráveis em que vivem, mas também pelas suas escolhas, pelo que se sujeitam, pelo que são obrigados a fazer para não morrer de fome; há um desejo nítido na expansiva Mamma Roma (Magnani era pura energia visceral e explosiva em cena) em tentar fazer as coisas certas, mesmo com as falhas de caráter; os longos porém irriquietos planos, a ação estendida no tempo e explorando o espaço denotam um espaço diegético imenso, onde muitos se perdem todos os dias e os que sobrevivem compartilham a dor dos miseráveis.

O número de personagems dentro de quadro em Mamma Roma podem passar a impressão que o inferno são os outros, que restringem a nossa liberdade, que nos dominam e tudo mais; mas também é um cinema que existe para os outros, em função do outro. Seus personagens jamais existem sozinhos. Se são tanto algozes quanto vítimas, em muitos dos seus filmes mais ternos, como Mamma Roma, estão em busca de contato, de compreensão, de ajuda. A desiludida sociedade italiana de Pasolini só pode se apoiar na família, por mais que fuja do padrão – como a família monoparental formada por Mamma e Ettore, e das pessoas próximas, por mais que fujam do estereótipo conservador, como as amigas prostitutas da protagonista, ou o relacionamento conflituoso de Ettore com seus amigos vândalos. O próprio título já entrega essa leitura: a Mãe Roma só pode existir em função de um filho. E não à toa que a genitora de Roma seja uma ex-prostituta. A Itália de Pasolini é um país de muitas mulheres, de vários homens,  se comunicando de forma temperamental e intensa praticamente o tempo todo, da alegria à raiva: Mamma Roma é uma imagem pulsante de uma Itália não criada, mas percebida revelada.

A câmera, indo às ruas, liberta dos estúdios, percorrendo a Itália que não convinha ao Estado conservador e ainda ligado à igreja, conferiu uma força poética sem igual que influenciou todas as novas escolas de cinema ao redor do globo ao criar um cinema que não se pretendia uma resposta, não se pretendia uma linguagem, não se pretendia a maiores engenhosidades; pretendia, antes, a experimentação, o desmanche do modelo tradicional, as composições de luz, sombra e movimento interagindo de forma ativa com a dramaturgia inovadora, influenciada pelas novas escolas de pensamento do teatro, com personagens que vagavam, que não evoluíam, que não se tornavam melhores; que eram dolorosaemente humanos. A imagem, direta e com teor realista, graças à Tonino Deli Colli, o mesmo diretor de fotografia de Sergio Leone alerio Zurlini e Federico Fellini, confere com seus tons fortes um filme que cresce aos olhos, que nunca passa despercebido, que evidencia seus contrastes sociais através dos contrastes de tom e intensidade no seu preto e branco tão vivo quanto imenso e aterrador.

Sufocados por uma macroestrutura sem esperanças de escalarem o meio social de onde vivem, os personagens de Pasolini não transgridem, pois miseráveis que são, não constituem oposição à situação. Não subvertem, porque a sua realidade não parece ter a escapatória. Resta-lhes a marginalidade, o “estar à parte”, a sensação de não-pertencimento. Mamma Roma sempre parece deslocada tanto entre os entediados vendedores do mercado quanto entre desinteressadas prostitutas, com sua persona conferida pela atriz sempre maior que a vida, sempre furiosa, sempre galhofeira; Ettore jamais consegue se acertar totalmente com os vândalos. Mesmo mãe e filho jamais conseguem se entender direito; Mamma é extremamente zelosa, Ettore extremamente rebelde. A mãe Roma não sabia onde estava pisando, não sabia para onde guiar suas crias desamparadas, nem tinha certeza se ia sobreviver frente à maré de pobreza, violência e estratificação social que vigorava de forma tão absoluta; mas o que torna o filme de Pasolini tão humano, tão cativante e tão forte é que ninguém, frente à sua determinação inabalável de tentar viver, poderia impedi-la de pelo menos tentar.

Comentários (3)

Adriano Augusto dos Santos | quinta-feira, 04 de Abril de 2013 - 09:14

Finalmente um texto pra esse.Um dos fabulosos de Pasolini.que sempre usava personagens amorais e "baixos".

Magnani é um espetáculo.Tão forte,tão viva,esfuziante.Fora seu jeito marcante,falador,dizendo bobagens,xingando,que marca o lugar aonde chega.

Rodrigo Cunha | quinta-feira, 04 de Abril de 2013 - 09:56

Estamos revivendo a época de criticar clássicos, coisas boas vão vir por aí. :)

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