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Críticas

Cineplayers

Animação australiana reflete temas profundamente humanos em personagens de argila.

7,5

Tex Avery, grande animador da primeira metade do século passado que fez carreira em estúdios como Warner e MGM, considerava a animação o melhor gênero de se trabalhar por conta das grandes possibilidades que ela permitia de se explorar o imaginário, o onírico, desprender-se da realidade e buscar refúgio em um mundo novo. Adam Elliot é seguramente um realizador mais pessimista que Avery, o que faz desta primeira animação do australiano quase uma antítese de suas teorias criativas, mesmo que se perceba diversos traços herdados do estilo inconfundível do criador de clássicos como Who Killed Who? (minha provável animação favorita).

Mary e Max - Uma Amizade Diferente traz, acima de tudo, uma percepção impressionante sobre um mundo que, embora tenha evoluído tecnologicamente, mantém em sua essência algumas características que parecem difíceis de serem rompidas, sentimentos que soam intrínsecos ao ser humano independente da concepção de grupo que se desenvolva.  Em tempos de internet, mensagens virtuais e telefones celulares que nos permitem comunicação instantânea entre dois pontos distintos do mundo, é curioso – e doloroso – constatar que muitas vezes, mesmo tão inseridos, o que precisamos é do contato certo, e que nestes momentos ele pode estar muito distante, ainda inacessível.

É por esta experiência que passam Mary e Max, que em outra época protagonizam exatamente aquilo que muitos de nós, usuários da internet, mantemos hoje em dia: uma amizade exclusivamente dependente de meios de comunicação inumanos.  No caso nosso, o meio virtual; no deles, as correspondências em papel. Mary, garota australiana solitária que sofre com a ausência do pai e os excessos da mãe alcoólatra, escolhe aleatoriamente um nome em uma lista telefônica pertencente a um país distante, os Estados Unidos, e por coincidência ou conspiração conhece, através da troca de cartas, Max, um senhor solitário, sem amigos ou namoradas, que sofre de retardo mental e possui um estilo de vida anti-social, assim como o dela.

Essa amizade acaba se tornando uma grande jornada de compreensão, um do outro, de si mesmos, da vida e do mundo que os cerca, mesmo que distorcido por suas visões quase alienígenas das coisas.  Jornada que é marcada por observações peculiares e que mostram em Elliot, que aqui assina roteiro, direção e criação visual, um autor ousado e dotado de um olhar ao mesmo tempo desolador e sarcástico sobre esta realidade que pinta, especialmente por conta dos exageros sempre conotativos da estética que constrói com sua habilidosa técnica de stop motion com argila. Das caricaturas físicas dos personagens e objetos às composições particulares de cada um dos países retratados  – Austrália a terra do sépia; Estados Unidos, a do preto-e-branco – existem momentos de imensa criatividade e audácia.

Através desses detalhes e de coincidências obviamente improváveis, características, aí sim, da animação tradicional, Elliot joga no ventilador diversos temas como solidão, insegurança, amizade, necessidade e perdão em uma animação que abandona por definitivo o campo desenvolvido por Avery e outros produtores como Walt Disney – e, em menor escala, seus herdeiros da Pixar. Por falar em Pixar, a presença de algumas discussões mais sérias pode ser notada nos últimos filmes do estúdio, mas o que Eliot promove é um verdadeiro tour de force de submersão indigesta em discussões polêmicas e que, através de seu humor negro e da incrível coragem ao despir-se deste humor em certos momentos para atingir um grau quase visceral de sinceridade, resultam em um filme ao mesmo tempo divertido e depressivo, pessimista e otimista, capaz de explorar o componente humano como poucos filmes com atores de carne e osso lançados nos últimos tempos foram capazes.

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