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Críticas

Cineplayers

Resnais é um dos únicos cineastas franceses dos anos 60 na ativa e em ótima forma. Este filme é a prova disso.

8,0

Último dos grandes cineastas franceses dos anos 60 ainda na ativa e em excelente forma (Chabrol, Godard e Rivette escorregaram muito ultimamente, Rohmer é muito esporádico), Alain Resnais venceu o prêmio de direção no Festival de Veneza em 2006 (o segundo, 45 anos depois de ter vencido pelo antológico O Ano Passado em Marienbad) com uma peça inglesa um tanto monocórdica e estática, Medos Privados em Lugares Públicos, mas nas mãos desse grande cineasta alça vôo, em especial na segunda metade.

A obra original, de Alan Ayckbourn, tem a perícia dos ingleses em diálogos ágeis e densos, contanto a história de sete personagens engolfados pela solidão e a maneira como lidam com ela. É a segunda peça do inglês que Resnais adapta: a primeira foi o díptico Smoking e No Smoking. Resnais, com seu “aplomb” francês, agudiza a falação e não é muito ágil nos cortes, mas, em compensação, entra com sua habitual elegância e firmeza, filmando de maneira sóbria e grave a vida dessas pessoas normais solitárias e por vezes mesquinhas por causa disso.

Resnais é um formalista. Cartesiano, eu acrescentaria, dirige tudo com rigor e com uma mente quase matemática. É obcecado por jogos e labirintos narrativos, daí que o entrelaçamento de sete personagens durante apenas quatro dias num único bairro (Bercy) de Paris é terreno não só conhecido como fértil para esse diretor que tem pelo menos duas obras-primas no currículo, igualmente geométricas na feitura: além do já citado O Ano Passado em Marienbad, com seus cenários tirados de quadrinhos e diálogos metafísicos, Hiroshima Meu Amor, um dos filmes símbolos da geração dos loucos anos 60.

Com apenas dez minutos de filme o espectador já está completamente envolvido na trama intrincada e sem concessões do diretor. É importante ressaltar que Resnais, ao contrário de quase todos os cineastas autores, sempre trabalha com roteiristas e nunca escreveu um script, concentrando-se na “mise-en-scène”. Daí a força das suas imagens, que não estão para explicar a história nem para embalar o roteiro, mas para aumentá-la, engrandecê-la, enriquecê-la de comentários visuais, sonoros e filosóficos, perfazendo um cardápio bem mais rico que a maioria dos filmes contemporâneos, auto-explicativos por definição. Tanto que Resnais nunca adaptou um romance para as telas: prefere o modo direto do teatro de se comunicar com o público.

Não há detalhes do passado das personagens, nem sobrenomes. Apesar de algumas situações e a maneira de dizer certas falas serem tipicamente inglesas, com um quê de teatrais, Resnais não se preocupou nem em forçar a adaptação francesa nem de esconder as origens do texto. Concentrou-se em explorar o espaço da maneira esplêndida como sempre faz: talvez Resnais seja hoje o único cineasta hoje que explore os cenários tão bem (Polanski já teve essa preocupação, hoje não mais). Resnais tem obsessão pela arquitetura, em que cada detalhe se ajunta para formar a psiquê dos personagens, daí mostrar tetos.

Assim, imagens e frases se juntam de maneira surrealista – Resnais se diz influenciado por André Breton. Os 54 quadros se ajuntam não apenas pela superposição dos acontecimentos, mas, tendo a neve como leitmotiv visual, é uma roupa suja de sopa que aparece limpa, a neve que cai dentro do quarto encobrindo os atores, os cortes impossíveis de tempo e espaço, as tomadas de ângulos desconhecidos que, apesar de escancarar a técnica cinematográfica, não interfere no filme em si.

Resnais não se cansa nunca: seu filme parece movido por uma estranha força muito forte que o impele a criar imagens sem descanso, todas plenas de significado. A neve está sempre depositada nos ombros das personagens, como sempre em seus filmes, como em Do Amor à Morte. Aos 85 anos, Resnais fez um filme de andamento solene, que exige do espectador não só atenção máxima aos detalhes como certa entrega ao ritmo proposto. Não tem a alegria esfuziante de On Connaît la Chanson (Amores Parisienses, 1997). Mais uma vez prova que não é apegado a um estilo ou a alguns temas: Resnais, além de tudo, é dos autores o mais eclético, o mais elástico, e um dos mais fascinantes.

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