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Críticas

Cineplayers

Cinema duro e sem concessões.

7,5

Em texto publicado sobre Polisse (idem, 2011), Ursula Rösele aborda a questão da representação do cinema, evocando o Holocausto para lidar com a questão da representação da pedofilia – não entre um e outro no sentido moral ou histórico, mas como questões certamente análogas no que diz respeito à representação: como representá-las? Até onde, por exemplo, é algo aceitável, ou ainda desejável vermos a consumação de um ato pedófilo encenado na tela? São questões certamente inevitáveis ao lidarmos com esse Michael, do austríaco Markus Schleinzer – cujo trabalho não conhecia e que parece estar ligado de alguma maneira a Michael Haneke e seu último A Fita Branca (Das weiße Band, 2009), vencedor da Palma de Ouro de 2009. Mas não apenas essas.

Michael é o nome do personagem principal, que mantém uma criança seqüestrada em um aposento secreto em sua casa. Schleinzer faz um filme duro, seco, que acompanha o cotidiano do personagem em sua diabólica monotonia: Michael é um típico trabalhador de classe média, que divide seu tempo entre seu trabalho em uma companhia de seguros e sua relação hedionda e abjeta com a criança que mantém refém e de quem abusa física, moral e sexualmente. A secura com que o filme acompanha seu personagem em seus atos é profundamente incômoda e evoca a velha questão acerca da humanização de determinados tipos humanos. Ver Michael em seu carro, a cantar alegremente uma canção como “Sunny” depois de o termos visto limpando seu pênis com extrema naturalidade após abusar de sua vítima indefesa (cena que não vemos, mas que é subentendida) é algo que nos desconcerta a ponto de querermos negar-lhe legitimidade: antes questionar quem a põe em tela que lidar efetivamente com o fato de que, sim, os pedófilos são, em parte, pessoas como quaisquer outras, que cantarolam inofensivamente músicas em seu carro, bem como esquiam nas férias ou confraternizam com seus colegas de trabalho.

A questão, pois, não passa pela legitimidade, mas  pela força e a relevância do que nos é exibido. Até que ponto ganhamos ao nos submetermos a uma experiência tão dolorosa que é assistir a filmes como Michael (questão semelhante podemos fazer acerca de um Violência Gratuita [Funny Games, 1997], de Haneke, por exemplo. A resposta em ambos os casos parece apontar que, sim, são filmes tão fortes quanto necessários, sobretudo porque são filmes que não espetacularizam seus temas e objetos (eis a abjeção efetiva, denunciada por Jacques Rivette em texto canônico para a crítica cinematográfica), mas que a partir deles constroem um cinema tanto sincero em articulação quanto potente em sua mise-en-scène.

Não há concessão ao espectador, tampouco a preocupação de, a todo  momento, escancarar reprimendas morais ao que se vê em cena: é tudo obviamente nojento demais para que isso seja necessário, sendo o ponto aqui o de fazer justamente o oposto, como que implicitamente denunciando a inocuidade da abordagem simplesmente moralista ao problema.  É como se o filme quisesse dizer: por mais incômodo que seja, precisamos conhecer essas pessoas, sob o risco de continuarmos a falhar ao procurarmos demônios de chifres.

E uma cena é emblemática nesse sentido, quando Michael vai procurar outra criança para “fazer companhia” a Wolfgang, a quem mantém preso.  Um travelling o acompanha ao abordar de maneira sorrateira uma criança, envolvendo-a em sua covardia ardilosa: em off ouvimos seu pai a chamando, repreeendendo o ato da criança ter “sumido” e ainda por cima estar conversando com um estranho. Mal sabia ele do que havia livrado seu filho; o travelling continua a acompanhar Michael, que, patético e covarde, acelera o passo para fugir o mais rápido possível sem ser pego. Atrasasse o pai um minuto e tudo poderia ter sido terrivelmente diferente, como o foi no caso de Wolfgang.

Visto no Festival de Cannes 2011.

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