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Críticas

Cineplayers

A Garota com a Tatuagem de Dragão.

8,0

Poderia pairar mesmo entre os admiradores de David Fincher uma desconfiança de que, a julgar pelos trabalhos mais bem-comportados que vinha fazendo nos últimos tempos, o seu cinema encontrava-se para o bem ou para o mal cada vez mais domesticado. Millennium - Os Homens que Não Amavam as Mulheres (The Girl with the Dragon Tattoo, 2011) atesta o que a suspeita tem de verdade e o que ela possui de falso: o filme recupera uma predileção antiga do cineasta por uma temática mais violenta e sombria (que parecia adormecida em sua obra mais recente), e ao mesmo tempo confirma o amadurecimento que vinha sendo celebrado em torno da figura do realizador. As marcas de praticamente todos os seus trabalhos anteriores podem ser reconhecidas nesse mais recente, desde os discutíveis créditos de abertura (a não ser que seja uma brincadeira com o fato do filme ser estrelado pelo 007 atual, Daniel Craig, com seu estilo clipeiro se justificaria apenas como vinheta de entrada para algum seriado de TV) até uma discreta e tocante cena final que prossegue com os normalmente reprimidos desfechos românticos na filmografia do diretor.

Um dos desafios seria o de superar uma suposta falta de originalidade que seria a de adaptar um best seller recente bastante popular que já tinha dado origem a uma versão cinematográfica na Suécia onde surgira a trilogia de livros Millenium. Pode-se gostar ou desprezar o material original ou o filme sueco, mas não é preciso muito esforço para perceber que o de Fincher utiliza os personagens e a linha narrativa do primeiro romance como suporte para o seu cinema e estilo, não como veículo para uma franquia lucrativa em torno de uma grife literária recorrente nas atuais listas dos livros mais vendidos. As opiniões de quem viu ambos os filmes são unânimes em dizer que um pouco tem a ver com o outro. A versão hollywoodiana ficaria então com a necessidade de agradar aos fãs dos livros originais e também aos que nunca tiveram grande interesse por eles. O objetivo parece plenamente alcançado.

Um thriller gélido em meio a ambientes corruptos e cheios de vícios (bebe-se álcool ou café e fuma-se constantemente no filme), estupros, assassinatos, citações do Velho Testamento, personagens marginalizados e com traumas familiares ou de falência. A trama se passa na Suécia entre 2002 e 2003. Mikael (Craig) é o jornalista contratado para investigar o fim de Harriet, sobrinha-neta de um ex-industrial, que desapareceu nos anos 60, em meio a uma série de crimes envolvendo a morte de mulheres ocorridos na época. O milionário, Henrik Vanger (Christopher Plummer), desconfia do envolvimento de seus próprios familiares no caso.

Como em Zodíaco (Zodiac, 2007), a obra-prima do diretor, é bem mais sobre a obsessão da investigação do que a investigação em si. O que de certa forma reflete o estilo do seu diretor, que no fundo, com toda a sua obsessão por detalhes, talvez seja um cineasta bem mais obsessivo do que propriamente talentoso ─ ainda que no processo todo de conceber e realizar filmes cada vez mais ambiciosos ao longo dos anos vem burilando um talento que é inegável desde os seus primeiros trabalhos. Em Millenium, Fincher prossegue com todo o seu virtuosismo visual para contar uma história enigmática sem perder o foco. Ao contrário do que seria o esperado, a solução do mistério e descoberta de quem era o responsável pela onda de assassinatos no passado pouco importa. O clássico gênero do filme de serial killer serve mais como dispositivo para que outras questões selvagens venham à tela, com as paisagens enevoadas da ilha de Hedestad, que abriga a propriedade dos Vanger, parecendo um campo bucólico a esconder perversões e algo podre muito oculto a macular a rotina do lugar e dos personagens.

E são dois desses personagens, no começo ambos à parte desse universo maculado, mas cada um deles vindo de seus próprios infernos particulares, que Millenium prefere se concentrar, formando o interesse principal do filme: Mikael e Lisbeth Salander (Rooney Mara), a hacker encarregada de vigiar o jornalista a pedido dos homens que o contrataram, e que depois de um tempo passa a ajudá-lo na investigação. Ela é de fato a alma de Millenium, como dá a entender o título original. O título brasileiro, entretanto, sugere o outro lado, o dos homens que odeiam mulheres, seja em torno dos assassinatos antigos que as liquidam, ou no desconforto de Lisbeth em viver numa sociedade de homens onde não se encaixa, mas na qual precisa se submeter (sempre sofreu com eles e vive sob custódia e refém de um agente de estado ao qual depende sua avaliação periódica em virtude de um passado turbulento).

Millennium - Os Homens que Não Amavam as Mulheres é um filme sobre misóginos, e assim é quase todos os filmes de David Fincher, com seus monstros sociais e confrontos e jogos de dominação masculina (com a ação dos filmes sendo um assunto particular de homens), nos quais as figuras femininas ocupam um espaço à parte, porém com a instância do feminino como um papel importante. Em Seven - Os Sete Crimes Capitais (Se7en, 1995), para dar um exemplo, a mulher existe apenas para sucumbir no final. Rooney Mara, que encarna a protagonista de Millenium, é a mesma atriz que viveu a namorada cujo rompimento de uma relação impossível foi propulsora do ponto de partida de A Rede Social (The Social Network, 2010). O seu papel no filme novo, mais extenso, é visualmente um dos mais excêntricos do cinema contemporâneo desde a Marla Singer de Clube da Luta (Fight Club, 1999), quase uma figura andrógina à beira do gótico com sua face escondida pelos piercings e cabelos mal-cuidados, além do cultivo por certa morbidez.

Como na maioria dos filmes de Fincher, há a forte presença de um elemento físico no seu trabalho formal, a atenção com objetos de cena e ambientes, com os hábitos dos personagens, o que inclui o ótimo trabalho com os atores. O trabalho de expressão corporal do elenco por vezes impressiona, sobretudo o de Rooney, cuja postura e jeito de andar reforçam ainda mais seus modos deslocados. Ela é mostrada, durante a primeira metade de Millenium, em cenas paralelas com as de Craig. Quando seus caminhos se cruzam, e passam a percorrer juntos na investigação, ela sutilmente se transforma diante de nossos olhos, revela-se um pouco mais feminina, mas nunca de maneira plena, sempre aprisionada em sua aparência, da qual não chega a se libertar integralmente (a metamorfose só é completa como disfarce para um golpe ultra-elaborado, já no epílogo). Como a Marla em Clube da Luta ou a Erica em A Rede Social, a mulher serve como contraponto ao universo predominantemente masculino dos filmes, colocando suas misoginias em crise. Em A Rede Social, o homem perde a mulher. Em Millenium, ela é que o liberta. Mas, independente do que ocorrer, os personagens dos filmes de David Fincher parecem eternamente condenados a trilhar um caminho entre a invasão ou falta de privacidade e os isolamentos perenes.

Comentários (37)

Carlos Saldanha | segunda-feira, 30 de Janeiro de 2012 - 16:00

Eu apesar de ser um grande fã do Fincher, fiquei meio decepcionado com essa versão americana. Eu acho que ele não trouxe, nada de novo à essa adaptação. Acho o o filme sueco, superior ao americano. E as poucas que coisas que ele mudou, prejudicou o resultado. Sem falar que a atriz que faz a Lisbeth, é muito melhor em todos os sentidos, que a americana.

Douglas Braga | segunda-feira, 30 de Janeiro de 2012 - 23:24

Também fiquei desapontado com o filme. Esperava mais do David Fincher. Algumas cenas, inclusive, são idênticas às do filme sueco, parece que foram copiadas. Mas, sem entrar nesse detalhe, o filme é muito frio (muito mais do que A Rede Social, no qual a "frieza" acabou sendo uma virtude de certa forma)) e não empolga.

André F. F. | terça-feira, 21 de Fevereiro de 2012 - 03:06

Daniel Craig ficou excelente como Mikael, mas a Lisbeth original foi muito superior a fr Rooney, embora ela tenha ido bem no papel.

No fim passou a sensação de ter sido uma boa cópia do original, apenas para alterar o idioma falado nas cenas...

Luís Daniel | segunda-feira, 09 de Abril de 2012 - 02:45

Disse tudo o que eu teria pra dizer. hehe

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