Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Brutal retrato da crueldade humana visto através de um filtro banal e desinteressante.

5,0

É sempre fascinante quando um filme consegue apresentar de forma sucinta e clara sua estética em apenas alguns minutos de projeção. No caso do premiado Miss Violence, a cena de abertura revela como o diretor Alexandros Avranas trabalhará sua trama em quase todos os aspectos, enquanto outros ficam sugeridos de forma inequívoca. Está tudo ali: em seu aniversário de 11 anos, Angeliki troca olhares amargos com a irmã mais velha, e, num momento de distração da família, se dependura da sacada com um sorriso no rosto, saltando em seguida para sua morte.

No que será a chave para o trabalho de Avranas, a garota olha diretamente para a câmera, de costas para a mãe, os irmãos e os avós. É uma expressão vista exclusivamente pela plateia, ou seja, trata-se de um mistério específico mostrado para que nós, como espectadores, o decifremos. A ideia é inspirada, pois, de fato, apenas para o olho externo se faz necessária alguma explicação. Cada minúcia da direção ressalta como aquelas pessoas agem de forma bizarra perante a morte de um parente jovem e próximo, até o ponto em que alguém verbaliza que sequer se nota o impacto daquela tragédia nos outros membros da família. Assim, o diretor busca canalizar uma tensão pulsante, perceptível em virtualmente todas as suas escolhas, de forma a sugerir segredos sombrios que quase todos os personagens conhecem.

Não há o que o cineasta não transfigure em algo perturbador. Apesar da narrativa simples, calcada na rotina familiar, o padrão das imagens varia de forma constante: temos a frieza de certos planos em momentos de drama intenso, os diálogos entoados frontalmente para a câmera, o suspense sugerido na movimentação dos atores pelo enquadramento, e por aí vai. A montagem talvez seja o único elemento igualmente perturbador, com seus cortes secos, suas cenas incompletas e sua gritante assimetria. O aspecto sonoro também não fica de lado, já que as músicas destoam com frequência do que a tela exibe, e a sonoplastia preza por silêncios e ruídos bruscos, muito eficientes em quebrar a recorrente placidez. Isso sem mencionar, claro, as pontuais relações de abuso, violência, opressão e terror presentes em todo o filme.

E é essa atenção de Avranas em todas as frentes de sua obra que a naufraga. Por investir tão pesado nessa proposta, o cineasta foca no “como” e deixa o “o que” à deriva. A construção da tensão é trabalhada muito além da conta para uma conclusão tão simplória. No lugar de quem cometeu tal ato grotesco, e passando pelos porquês (pois os motivos são simples e ficam claros), a trama está sempre visando à específica natureza do que aquela família perpetra. O roteiro, escrito por Avranas e Kostas Peroulis, se torna terrivelmente pobre – pode-se até dizer condenável – ao se dependurar de tal forma nos detalhes da crueldade. Percebe-se que as figuras paternas e maternas são retratadas como opressoras a fim de sugerir uma explicação alternativa para o suicídio da garota, mas abundam os indícios de que há muitos outros esqueletos no armário.

O principal sinal de que mais segredos obscuros existem é a forma como o diretor filma os momentos de violência doméstica. A fria estilização dos surtos tirânicos dos avós é tamanha que se torna impossível acreditar que um cineasta comporia aquilo daquela maneira apenas por soberba. É a dissonância entre os atos doentios e o registro calculado que de início sugere e logo martela uma tensão mais profunda e horripilante, que justifique aquela estética perturbadora. Esse arcabouço é fácil de notar muito cedo e não tarda a se tornar distrativo. Quando, finalmente, os panos vão se levantando – alguns de sopetão, outros de forma gradual –, o que parecia distração se revela meramente arroubo estilístico em prol de uma narrativa paupérrima, calcada nas minúcias de horrores velados que estão sempre em relevo.

Avranas chega a costurar cenas deslocadas na rotina da família, como o carro do avô estacionando em locais escondidos, por exemplo, apenas para confeccionar um mistério a ser solucionado no fim. O problema é que a natureza das verdades escusas é mais importante que sua presença, e girar em torno da descoberta, além de beirar o mórbido, faz com que as inumeráveis pistas dispostas pelo cineasta se tornem artificiais, mero acúmulo de expectativa. Usando um exemplo recente, o diretor se beneficiaria imensamente da proposta de O Homem das Multidões, de Miguel Gomes e Cao Guimarães. Nele, as instabilidades não se fazem dependentes de uma revelação, mas esta mesmo assim existe, tão surpreendente quanto bem fundamentada ao longo da narrativa. É o tipo de estilização sutil que tornaria Miss Violence algo muito mais perturbador.

Apesar de tudo isso, o longa de Avranas ainda reserva uma surpresa. A despeito da sufocante proposta estética, o cineasta desenvolve mais que uma expectativa simplista ao longo da narrativa. Após, é verdade, um alarme falso: no que poderia ser a grande cena redentora do filme, a matriarca da família limpa várias facas enquanto seu tirano come despreocupado ao lado, num lancinante testamento do poder simbólico que domina aquela família. É uma pena que esse instante genial siga a regra do e se tome a rota mais óbvia e tola possível, provando-se apenas um pífio prenúncio do que se dará em seguida.

Mas é verdade que a sequência leva a um lampejo radiante de inspiração, até mesmo alimentado por fios tecidos ao longo da obra. Através de vários signos passageiros, Avranas constrói os fundamentos para um genial final aberto, talvez o primeiro momento de suspense genuíno e orgânico da trama, e também aquele em que melhor se sente uma instabilidade, já que os motivos para tensão não estão acobertados, mas sim em suspenso. Seria o ato de fechar a porta uma reação simbólica à regra do avô, que não permitia segredos em casa? Ou uma inversão da primeira cena, na qual Angeliki e a irmã mais velha abrem a porta para simbolizar a verdade que ambas sabem? É um encerramento rico como nada do que se viu até então.

Seria excelente que esses minutos derradeiros enriquecessem e dessem outra perspectiva para o filme pregresso. Infelizmente, trata-se apenas de um zênite, um brilho tardio que redime pouco do exercício de estilo que se desenvolveu nos desperdiçados caminhos que levaram até ali.

Comentários (11)

Francisco Bandeira | quinta-feira, 09 de Outubro de 2014 - 19:07

Gostei muito também! Vi o filme como uma bela crítica ao povo da Grécia.

Polastri | quinta-feira, 09 de Outubro de 2014 - 21:37

Pior filme lançado esse ano, consegue ser pior (e com visão de mundo mais pobre) que Trier.

SYLVIO DE ALENCAR NEVES COSTA | quarta-feira, 04 de Setembro de 2019 - 17:14

Frequento espaços voltados à crítica cinematográfica para me informar, não comprar gato por lebre.
Li outras críticas sobre este filme (antes de ter o trabalho de baixá-lo), e a sua é top;
Vai direto ao ponto, e informa o que interessa.

Parabéns; e obrigado!

Faça login para comentar.