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Críticas

Cineplayers

Sobre mãe e filho.

9,0

Mommy é o tipo de filme que parece não se esgotar facilmente. Cada percepção leva a outra, diversa que seja, e então a mais uma, num jogo de camadas muito mais empolgante do que pode soar. Não cabe argumentar se a obra é mais complexa que a média de um nicho qualquer de produções cinematográficas, pois ela não deixa de ser rica se encarada em suas superfícies. Por isso, é fácil ver o paralelo deste longa-metragem com o primeiro do cineasta canadense Xavier Dolan: além da premissa mais ou menos similar, vem de Eu Matei Minha Mãe a pluralidade de recursos estilísticos que transformou aquela estreia em uma explosão temerária de cinema juvenil. E uma delas é a predisposição novelesca e afetada do diretor, que aqui já leva a questionamentos e relativizações bastante instigantes.

A personagem de Anne Dorval, a mãe viúva Diane “Die” Després, carrega o conjunto completo de visual, índole e rotina caricaturais que a permitiriam caber em boa parte das novelas latino-americanas dos últimos anos. Sua relação heterodoxa com o filho Steve (Antoine Pilon) também não ficaria deslocada no núcleo cômico de algum enlatado brasileiro ou mexicano de fim de tarde, com suas brigas histéricas e surtos efusivos. Mas isto pode apenas ser dito do primeiro terço da projeção, ou talvez até menos. Não tarda para que o tom farsesco dê lugar a um drama domiciliar muito bem delimitado, quase irreconhecível se comparado às cenas de minutos antes. No entanto, essas duas propostas não são inconciliáveis, mas sim inseparáveis.

Na verdade, essa primeira reviravolta, das muitas que Mommy reserva, é tão singela quanto o virar de uma moeda. A proximidade intensa de mãe e filho é pautada pelas instabilidades psicológicas de Steve. Pode-se inferir que a natureza irascível e violenta do garoto moldou a personalidade de Die e que o fraquejar desta inspirou no filho uma afetividade exacerbada, embora não fique (excessivamente) claro como essas influências se deram. O dia a dia caótico retratado até então acaba ganhando a aparência de um oásis, lamacento que seja, em meio às tempestades que rugem nos piores momentos. E Dolan vai além do dualismo de apresentar a desordem funcional (ou a ordem disfuncional) da família e explorar as instabilidades mais urgentes que a afetam.

Após estabelecer as particularidades de Steve e Die, o filme mais uma vez muda de foco, passando então a explorar as expectativas centrais da condição materna. O roteiro começa a desenvolver de forma mais pronunciada as esperanças, as frustrações, as afeições e as fragilidades de qualquer mãe, moldando sentimentos antes particulares em formas universais. É quando Die manifesta de forma ainda mais intensa seu amor incondicional, e também se vê cada vez mais atormentada pelas escolhas que deve fazer em relação ao filho. Este, por sua vez, mostra o mesmo afeto, mas segue o caminho do jovem problemático. Com isso, o filme cria uma belíssima transição do histriônico para o dramático e do dramático para o arquetípico.

É nesse sentido que Dolan encontra uma singeleza pungente: seus floreios estéticos seguem de alguma forma presentes, inclusive na narrativa, e as emoções cruas continuam ditando os relacionamentos entre personagens, mas o cuidado de fundamentar todas essas construções faz com que esta seja uma obra de maturidade perceptível. É uma forte oposição ao descarrego que é Eu Matei Minha Mãe e à ilusão de superioridade vista em Os Amores Imaginários, e vários estágios acima de Laurence Anyways em sua busca por um cinema profundo e ainda assim pessoal. Não é difícil notar que o diretor se despojou de muitos de seus tiques e se focou na cena, nos atores e em emoções familiares, como que cortando sua autoralidade com a forma de um drama clássico.

Chega a ser surpreendente como o cineasta molda a encenação, a fotografia, a montagem e o som de forma tão singela para dar peso a cada aspecto da trama, cada traço dos personagens, cada minúcia de seus relacionamentos. Como um conhecedor do cinema de Dolan pode imaginar, essa proposta se estende às músicas usadas para pontuar certas cenas. Suas ideias para a trilha sonora se mantêm muito semelhantes, mas, seguindo a tendência do filme todo, se mostram mais simples que de costume. No caso, é a honestidade que se faz notar, seja com Dido relatando os sentimentos de Die (“Eu vou afundar com este navio, e eu não vou levantar minhas mãos e me render”), Liam Gallagher cantando a expectativa da família (“Talvez você seja a pessoa que me salvará”) ou Lana Del Rey deixando uma nota amarga no final aberto (“Às vezes o amor não é o bastante quando a estrada fica difícil”).

Todo o conjunto dos esforços do diretor leva à valorização dos atores, particularmente o trio formado pela centradíssima Dorval, pelo vulcânico Pilon e por Suzanne Clément, que interpreta uma vizinha que se aproxima da família. Além de Clément viver as diversas facetas da personagem com incrível precisão, ela tem o atrativo de ser uma “forasteira”, uma figura de fora, que não surge logo de início para situar o espectador naquele mundo particular de Die e Steve. Com isso, além de apresentar traços sociais dos dois personagens, ela se torna extremamente crível como elemento catalisador, seja para estabilizar ou desestabilizar a mistura, e está presente em muitos dos momentos de crise e calmaria mais poderosos do longa.

Mas é impossível falar da estética de Mommy sem no mínimo mencionar a grande reviravolta que toma de assalto o terço final do filme. Com o respaldo vigoroso de “Experience”, do músico Ludovico Einaudi, a cena em questão puxa e concentra em um turbilhão tudo que o roteiro trabalhou até então, em uma pequena, comedida coleção de recursos tão simples que seu baque é quase inexplicável. E o mais impressionante é como mesmo esse singelo malabarismo estrutural é construído única e exclusivamente para elaborar os temas profundamente afetivos que regem a obra.

No fim, a produtividade prodigiosa do canadense é uma das mais magnéticas chaves para sua interpretação como artista: observar sua evolução, com sua dose de tropeços e enguiços, rende ricos resultados. Agora, com este novo filme, é possível se dar ao prazer múltiplo de encontrar Dolan com a disposição de se despir de suas alardeadas, famigeradas e premiadas pretensões autorais e investir em algo tão trivial quanto um filme sobre mãe e filho. E, desta vez, focar nisso.

Comentários (3)

Gustavo Hackaq | sábado, 13 de Dezembro de 2014 - 15:21

Necessito com urgência desse filme na minha vida.

Ricardo Amaral Guedes | sábado, 13 de Dezembro de 2014 - 17:19

"É uma forte oposição ao descarrego que é Eu Matei Minha Mãe e à ilusão de superioridade vista em Os Amores Imaginários" Opa!

Rafael F. | sábado, 13 de Dezembro de 2014 - 18:57

Ótima análise! É incrível perceber o quanto o Dolan amadureceu em seus filmes. Mommy foi uma experiência maravilhosa e intensa.

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