Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Adaptação à altura de um grande clássico.

8,0

Há quem diga que grande literatura raramente é traduzida em grande cinema. Quando publicado em 1957, o romance On The Road, de Jack Kerouac, foi recebido de forma entusiasmada pela crítica especializada. “Sua publicação é um evento histórico, na medida em que o surgimento de uma genuína obra de arte concorre para desvendar o espírito de uma época”, alardeou o The New York Times, na ocasião de seu lançamento. O seu tempo é o pós-guerra, o baby-boom, a hegemonia cultural norte-americana, a perspectiva de uma nova era libertária e próspera. On the Road é um trabalho de literatura visionário, seminal, na medida em que capta com aguçada autenticidade o nascente ímpeto juvenil, sedento por renovação e um novo modo de vida que a afastasse da recente tragédia mundial. Para tanto, reflete isso tanto na trama narrada, a epopeia moderna de Sal Paradise e Dean Moriarty, a Odisseia que define o século XX, mas, principalmente, na sua forma literária, o fluxo narrativo ensandecido de Kerouac. 

É descendente direto da tradição canônica da literatura norte-americana de F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway, por retratar o que seriam as chamadas gerações perdidas, mas é grande a influência de autores como James Joyce e William Faulkner ao transpor em palavras e métrica livre um fluxo de consciência narrativo, bebendo ainda na fonte de autores europeus como Arthur Rimbaud e Marcel Proust, lançando mão de recursos estilísticos como a prosa poética e a memória involuntária, respectivamente. O que fez do livro tão aclamado, também é o seu ponto questionável – “That isn’t wrighting; it’s typewrighting”, declarou o desafeto Truman Capote. On the Road é talvez o romance mais representativo de toda a esfera do pensamento do século, vai da psicanálise à psicodelia, da decadência da tradição tonal da música clássica à liberdade do bebop, do hardbop, do free jazz... verdadeiros rituais musicais que viriam a dar origem a um estilo chamado de rock. 

Por aí, somando-se ao peso histórico e influência da obra, tem-se uma noção aproximada da imensa dificuldade de adaptar para cinema um livro desta estatura. Há a viagem pela América, as constantes idas e vindas, situações inimagináveis pelas estradas, mas há o estilo narrativo, a transgressão estrutural, a ruptura, há quarenta metros de prosa em espaço um sem parágrafo, escrita por um autor regado a benzedrina datilografando quatorze mil palavras quatorze horas por dia.

Walter Salles teve um desafio imenso, que soube cumprir primorosamente, ao adaptar em linguagem cinematográfica essa poética narrativa. A escolha do diretor foi acertada por várias razões. Tem experiência com bons road movies como Central do Brasil (1998) e Diários de Motocicleta (2004), que tratam de questões da busca, a viagem territorial que é a trajetória do autoconhecimento, o encontro da identidade, a vida sob a perspectiva da ausência do pai, o melancólico elo do homem com seu criador. É um olhar de um estrangeiro sobre uma realidade norte-americana – Kerouac representa um ponto de vista alternativo e marginal sobre a própria sociedade a qual pertence (tanto que o termo beatnik faz menção ao satélite russo Sputnik). E, aos olhos dos produtores, é um cineasta do continente americano, um brasileiro da geração Cidade de Deus (2002), da câmera nervosa, pulsante, do olhar inquieto e montagem frenética. Por trás do filme está Francis Ford Coppola, que como David Lynch é um aficionado pelos anos 50, e que vem desde os anos 70 envolvido com projetos que orbitam em torno da juventude da época – de American Graffiti – Loucuras de Verão (American Graffiti, 1973), passando por O Selvagem da Motocicleta (Rumble Fish, 1983) e Peggy Sue – Seu Passado a Espera (Peggy Sue Got Married, 1986) ao recente e autobiográfico Tetro (idem, 2009). 

A escolha dos atores também foi muito feliz. Todos vindos de filmes que direta ou indiretamente estão relacionados com o universo do livro, com a influência deste. Sam Riley, que vive o alter-ego do escritor, Sal Paradise, foi revelado no cinema em Control (idem, 2007), vivendo a estrela do rock autodestrutivo Ian Curtis, líder do Joy Division. Kristen Stewart está perfeita como Marylou – a atriz  alavancou a carreira justamente em Na Natureza Selvagem (Into the Wild, 2007). E Dean Moriarty, com toda a sua truculência, virilidade, misturados com uma personalidade de sensibilidade e ternura, numa personificação inspirada de Garret Hedlund. 

Na Estrada (On the Road, 2012) é fiel ao livro. Seu fardo é o peso da obra, jamais indissociável. E o filme é muito feliz ao transpor tantas cenas de uso de drogas sem cair em apologias, sem virar uma celebração cult, débil e pseudoalternativa do consumo de alucinógenos. Consegue trazer para o audiovisual muitas cenas de sexo, jamais caindo na gratuidade, na apelação, no típico filme de cineasta polemista fácil – como em Paraísos Artificiais (2012), para citar um exemplo contemporâneo. Tem por base uma das referências mais cool e descoladas da cultura moderna, mas não há um Q de afetação indie, hipster, de modismos, de auto conclamação, autoindulgência, auto reverência, onde o realizador quer aparecer mais que o filme – o que provavelmente teria acontecido se tivesse caído em mãos erradas, num Robert Rodriguez da vida, como havia sugerido o autor da tradução brasileira, Eduardo Bueno. Se este projeto especificamente tivesse ficado a cargo, por exemplo, de algum diretor como Charlie Kaufman, Michel Gondry, Quentin Tarantino, Tim Burton, Sofia Coppola (sim, a lista é grande), de algum “autor” do cinema europeu atual ou algum diretor de videoclipes modernoso... É melhor nem imaginar. 

Outra virtude do olhar de Salles é que não caiu no erro primário de nove em cada dez adaptações de grandes clássicos da literatura: abusar da narração em off. Geralmente o peso e a sacralidade do texto original são tão presentes que acabam por subestimar a capacidade da linguagem cinematográfica em contar uma história com enquadramentos, movimentos de câmera, montagem, luz, sons – um exemplo desse tipo de erro no cinema nacional está em Lavoura Arcaica (2001), de Luiz Fernando Carvalho, que embora seja um diretor de talento inquestionável (e o próprio filme tenha sua beleza), por muitas vezes parece estar vendo um filme narrado, sendo explicado, justificado. Existem, evidentemente, exemplos muito piores. Salles opta por respeitar e acreditar no espectador quando, habilmente, faz um corte de um plano que mostra o rolo de papel em uma máquina de escrever para outro com o horizonte da pista de uma estrada. Quando, nos diálogos, não coloca na fala dos personagens descontentamentos com sua vida, ou com o American Way of Life, e representa isso simplesmente em sutilezas como a reações dos personagens ao ouvir música tradicional, ou repetir ironicamente o discurso do presidente Truman em que diz ser necessário reduzir o custo de vida a cada novo furto. Não oferece explicações fáceis ao que é exposto, justificativas, psicologizações, subsídios para a sua assimilação – a vida é o que é. 

A narrativa cinematográfica tem a câmera flutuante, os cortes desconcertantes, elipses e flashbacks condizentes com a retórica da forma da obra original, mas ainda assim há o clima de cinema clássico, a aura da era de ouro, planos  que esplendidamente fotografam a paisagem, o cenário selvagem dos EUA, com a câmera instável, o desequilíbrio, a tensão do olhar no envolvimento visceral dos personagens. A trilha jazzística, o bebop, as batidas descompassadas na caixa na bateria à la Gene Krupa pontuam o fluxo, mas jamais Salles faz da trilha um recurso meloso, para pré-fabricar emoções, dar ares de videoclipe enfadonho, algo feito em outros filmes, como no já citado Na Natureza Selvagem.  

Na Estrada, ao contrário do livro, foi recebido de forma morna em seu lançamento – no caso deste, no Festival de Cannes de 2012. Não deverá ter a relevância histórica da obra original. Tampouco inspirar novas gerações a sair de casa, explorar a vida intensamente. Jamais por demérito do filme, aliás, esta talvez seja a sua maior virtude – não há concessões no filme para torná-lo algo atual, palatável a uma geração que está muito mais para paranoia narcisista e histeria coletiva de A Rede Social (The Social Network, 2010) do que a rebelião e inquietude de Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, 1955). Na Estrada rema contra a maré tal como remara Jack Kerouac.

Comentários (11)

Diego Bauer | terça-feira, 17 de Julho de 2012 - 12:22

Me permita discordar, Juliano, mas acho que o filme consegue, de certa forma, instigar em quem assiste essa vontade de um dia criar coragem e partir numa viagem dessas. Creio que ele foi competentíssimo, e realmente conseguiu passar de forma brilhante o espírito de ser um aventureiro em busca de lugares, pessoas e histórias, e ver como isso pode te trazer experiências riquíssimas.

Também concordo sobre a narração em voice over, foi muito bem realizada. Digo até que é um ponto forte do filme.

Marcos andré Pereira | terça-feira, 17 de Julho de 2012 - 15:31

tambem tô com muita vontade pava ver esse filme mas primeiro quero ler o livro , que comprei a algum tempo

Rodrigo Barbosa | quinta-feira, 19 de Julho de 2012 - 05:17

Assisti ao filme sem ter lido o livro. Muita vontade de ler o livro agora. O filme parece ser realmente uma ode a obra do Kerouac. Dentre outras coisas (inclusive a excelente direção do Walter, agora a carreira dele "bomba" de vez), as atuações foram sensacionais. A Kristen mostra que pode e sabe, se com um bom roteiro e nas mãos de um bom diretor. Amei.

Faça login para comentar.