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Críticas

Cineplayers

Primeiro filme de Bogdanovich estuda formas distintas de horror.

9,0

Não foram poucos os cineastas que tiveram em Roger Corman, produtor e diretor de filmes B norte-americano, uma porta de entrada para o mundo do cinema: de Francis Ford Coppola a Martin Scorsese - incluindo nomes como Monte Hellman, Jonathan Demme, James Cameron e Joe Dante -, alguns dos grandes diretores da Nova Hollywood passaram pelas mãos deste que até hoje se mantém como um dos mais influentes nomes da história do cinema underground mundial. Peter Bogdanovich, crítico cinematográfico reconhecido por suas relevantes pesquisas e entrevistas publicadas com grandes artistas como Alfred Hithcock, John Ford, Anthony Mann e Howard Hawks, também faz parte desta lista, e seu primeiro filme, este Na Mira da Morte, talvez seja mais dependente do olhar atento – para não dizer sortudo, porque é praticamente inacreditável que alguém tenha convicção suficiente para acertar tantas vezes assim - de Corman do que qualquer outro filme de estreia produzido por ele.

Targets foi pensado e elaborado através de um acerto entre Corman e Bogdanovich, após o produtor descobrir que o astro Boris Karloff, segundo o contrato assinado por ambos, ainda devia a ele algumas horas de trabalho. Corman pediu a Bogdanovich, à época um de seus assistentes, para que bolasse um projeto qualquer em que pudesse encaixar o ator, já em final de carreira e bastante maltratado pelo tempo. Com base em uma história verídica que havia ocorrido alguns anos antes em uma cidadezinha do Texas, onde a população passou por momentos de terror sob a mira de um atirador, Bodganovich montou o roteiro de seu primeiro longa-metragem, que foi financiado com um custo baixíssimo – aproximadamente U$130 mil – e trazia Karloff como um ator de filmes de horror que decide largar o cinema e tem sua última aparição pública prejudicada pela presença de um atirador (o roteiro ainda passaria pela provação do mestre Samuel Fuller, que segundo Bogdanovich reescreveu boa parte do material antes que ele fosse efetivamente filmado). 

O ator eternizado como Frankestein, uma das lendas dos filmes de horror das primeiras décadas do século XX, é a chave para o discurso central de Targets. Logo nas imagens iniciais, retiradas de Terror no Castelo, filme de Roger Corman com atuação de Karloff, Bogdanovich apresenta pequenos traços que de imediato ajudam a resgatar a imagem que se construiu ao longo dos anos sobre a persona cinematográfica do ator: um vilão à moda antiga, do tempos dos contos medievais atmosféricos e góticos como os de Edgar Alan Poe, que amedrontava através do olhar e da insinuação e utilizava nada além de suas mãos e sombras para praticar o mal. As imagens, que são apresentadas junto aos créditos iniciais, revelam-se dentro do filme de Bogdanovich como uma projeção do último filme realizado pelo personagem fictício de Karloff, um ator que decide não representar mais em tela por acreditar ter virado uma caricatura saudosista de algo que um dia já funcionou como assombro. 

Bogdanovich, cuja base de cinema mantém fortes laços com o clássico, com o anacronismo e a inocência de eras passadas, constrói em Targets um canto de cisne para Karloff. E não apenas isso: nos ombros dessa figura cansada que se indispõe com a realidade em que vive, Bogdanovich escora conceitos aplicáveis não apenas ao cinema, ao ícone em questão ou ao período artístico em que esteve no auge. Karloff, que durante anos precisou apenas aparecer em cena para meter o horror – como ocorre no próprio filme em algumas oportunidades que exibem sempre aquele olhar deliciado do diretor por sobre os ícones cinematográficos da velha Hollywood, como quando o personagem de Bogdanovich acorda e se assusta ao vê-lo deitado ao seu lado, ou quando, logo em seguida, ele mesmo assusta-se com sua imagem sendo refletida no espelho – foi transformado pelo tempo em uma imagem leve e inocente demais para despertar o horror em pessoas que, diariamente, precisam encarar a brutalidade e a crueldade com a qual às vezes se mune o ser humano. 

É justamente este o embate proposto por Bogdanovich ao unificar as duas histórias paralelas de Targets, a de seu ator, que se prepara para participar da exibição de seu último filme, e a do homem que é fascinado por armas de fogo e resolve um dia, depois de montar um pretenso arsenal, sair descarregando bala em todo mundo: um choque entre o velho e o novo, que mede o peso do medo na sociedade em duas épocas distintas e apresenta a nova forma de horror que se instalava ao final da década de 1960, quando a violência e o caos cresciam de maneira assustadora - tão assustadora a ponto de reduzir Karloff a mera caricatura, um semblante inofensivo que para nada mais servia além de remeter a uma época em que isto era suficiente para tirar várias noites de sono. Os tempos em Targets são outros, e este caos acabaria não apenas fazendo com que fossem readaptados os conceitos de medo e perigo como também conduziriam o Cinema a uma nova roupagem, mais crua e pessimista; bem distante daquela em que Bogdanovich insistia em se firmar através de seus agridoces trabalhos nos anos 70, que o fizeram construir um caminho à parte na história do cinema da década. 

A forma com que Bogdanovich explora e dá vida a este choque de conceitos é embasbacante. As passagens em que simplesmente acompanha o atirador com sua câmera e em mais absoluto silêncio – sem trilha sonora ou quaisquer ruídos, apenas a dureza das imagens, blindadas por uma fotografia acinzentada e entregues feito um pacote de chumbos – estão entre as mais representativas do cinema da época e, dentro do próprio contexto de Targets, apresentam um contraste hipnótico com as cenas de Karloff, que, ao contrário desta realidade seca e fria pela qual são envoltas as cenas com o atirador, sempre é fotografado com uma delicadeza e profundidade apaixonantes, num processo de exaltação que só caberia mesmo ao cinema de Bogdanovich – a seqüência em que o ator relata para os colegas a história que havia decidido contar para o público presente em sua despedida como ‘palavras finais’ de sua carreira é de uma sensibilidade impressionante, e qualquer outro momento em que esteja presente é sempre composto por um bom humor e uma sensação de nostalgia que garantem ao filme um sabor especial. 

Melhor ainda é a seqüência derradeira, passada em um cinema drive in lotado de gente pronta para desfrutar de alguns momentos de pavor cinematográfico com um filme de horror gótico. A intersecção entre o medo fictício e o real proposta por Bogdanovich nestes minutos finais é certamente uma das mais belas sacadas desses primeiros anos da Nova Hollywood, que resulta em uma cena determinante para definir - ou compreender - os rumos do cinema e registrar a degradação do social que era presenciada nas ruas. O atirador que se posiciona atrás da tela de cinema onde o filme de Karloff está sendo projetado para alvejar o público presente no local é a personificação do horror que invadia as ruas e se sobreporia ao terror cinematográfico, aquele horror bobinho e insinuante. Mas mais interessante do que isto é perceber como Bogdanovich, um cineasta declaradamente apaixonado pelo cinema e eternamente dedicado a esta paixão, se posiciona ao colocar frente a frente estas duas faces do horror, indicando ao final de tudo que, a nós, cinéfilos, só uma coisa salva neste mundo cada vez mais desumano: e é, sim, o próprio cinema.

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