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Críticas

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Música é palavrão: documentário da cantora mais boca suja da MPB.

7,0

Demora um pouco, mas após uns 20 minutos dá para escutar o primeiro palavrão: “Puta que pariu, como essa música é bonita”, dispara Nana Caymmi, a boca mais suja da MPB. A cantora se referia a Saudade de Amar, do irmão Dori Caymmi em parceria com o compositor Paulo César Pinheiro, música de abertura do álbum Desejo (2002). Nana sempre quis canta-la ao final de seus shows, mas foi aconselhada a não fazer isso: “seria apedrejada que nem Maria Madalena”. O motivo: a música seria “triste” demais para encerrar uma apresentação. De certa forma, essa certa dificuldade de comunicação resume a carreira dessa cantora singular, cuja qualidade do trabalho é muitas vezes superior a de várias outras cantoras brasileiras, mas que nunca conheceu o mesmo sucesso das demais.

Mas o adocicado documentário dirigido pelo franco-suíço Georges Gachot, que dirigiu o também hagiográfico Maria Bethânia: Música é Perfume (2005), não se aprofunda na análise da carreira de Nana. Apesar de uma pesquisa de imagens requintada (o ponto alto do filme) e de narrar pontos importantes da trajetória da artista, Gachot, um apaixonado pela música brasileira, não se distanciou do objeto e seguiu a feitura do último CD de Nana, Sem Poupar Coração, poupando Nana de todo tipo de embaraço. Deixou só os palavrões, inúmeros, mas seria impossível falar de Nana sem uma enxurrada deles.

Há uma piada que explica a música de Nana Caymmi. Se Gal Costa cantar uma música em que uma mulher brigou com o amado, isso significa que eles tiveram uma briga, ela ficou magoada, mas depois tudo termina bem. Se a Maria Bethânia cantar a mesma música, a briga foi uma discussão violenta, a infeliz arrumou as malas e foi passar umas semanas na casa da mãe para esfriar a cabeça e decidir se volta ou não para o cidadão. Agora, se Nana Caymmi cantar essa música, é sem chance: o cara é quem arruma as coisas, vai embora e não volta nunca mais.

Motivos para explicar o aparente sumiço de Nana das paradas de sucesso, dos programas de TV e das primeiras páginas dos cadernos de cultura dos jornais não faltam. Um deles, apontado pelo documentário: Nana nunca foi cantora de bossa nova. Apesar de bastante identificada com o movimento e de ter interpretado várias músicas, inclusive em parceria com Tom Jobim, o vozeirão potente e grave de Nana nunca coube nos arranjos delicados para vozes pequenas que fizeram o sucesso do gênero. Em sua declaração em Nana Caymmi em Rio Sonata, Nana diz que não se engajou a movimento algum, nem mesmo a Tropicália, mesmo estando casada na época com Gilberto Gil. Nunca entendeu aquilo, não gostava e nunca cantou. Nana também não cantou música de protesto, da época da ditatura militar, bastante rentavel, segundo ela, até hoje. Mais: Nana Caymmi é obesa, um tanto feia, adora a Sandy Lima (acha a voz dela linda), já fez dois cds de bolero (o segundo deles, Sangre di mi alma, é sem dúvida um dos melhores de sua carreira) e fica bem longe dos modismos.

Ou seja, não haveria espaço para Nana na mídia por ela seria gorda, brega e direitista (Nana considera-se de “direita”, tendo participado das campanhas de César Maia, prefeito e governador no Rio, e José Serra para presidente). Mas essa tese, discutível, nem de longe é abordada pelo documentário. Mostra que Nana estudou com a mesma professora do pianista Nelson Freire, tem uma voz trabalhada e uma sofisticação musical que a levou a fazer muita música “difícil”. Nisso o documentário acerta: a música de Nana parece sofisticada demais para a classe média brasileira, “viciada em alguns compositores, num mesmo tipo de música sendo feita desde os anos 60” (opinião da cantora). Nana só conseguiu furar o cerco midiático porque conseguiu emplacar canções em novelas. Foi graças ao Resposta ao Tempo, da minissérie Hilda Furacão, que Nana quase vendeu pela primeira vez 100 mil cópias de um disco.

Gachot, em seus dois documentários sobre as duas cantoras brasileiras, Nana e Bethânia, parece ter se deslumbrado com a riqueza da música e seus intépretes e tudo é uma maravilha. Ou seja, seguiu os passos do intelectual francês Blaise Cendars, que de passagem pelo Brasil no século passado, não parava de repetir “quelle merveille, quelle merveille”. Gachot entama as músicas do cd com imagens cartão-postal do Rio de Janeiro, côté Mata Atlântica e Copacabana. Mostra todos os conhecidos de Nana, inclusive uma constrangedora passagem por um show de Bethânia (Brasileirinho, tema do documentário anterior). Nana, sentada ao lado de Miúcha, copo de uísque na mão, canta uma música do pai Dorival Caymmi bêbada incentivada aos excessos por Bethânia. Mas tudo é lindo, engraçado, encontro de amigos. Quelle merveille, quelle merveille.

Termina de braço dado com o pai já velho e doente num apartamento em Copacabana de frente para a praia, vista magnífica para os fogos de fim de ano. Não é citado que tanto o pai e a mãe de Nana haviam morrido, com poucos dias de diferença, no ano anterior. Aliás, mesmo quando mostra as imagens do Festival da Canção da Record que Nana venceu em 1966 com Saveiros, do irmão Dori Caymmi, Gachot usa uma artimanha: as vaias que ela tomou podem ser ouvidas, mas o fato não é discutido. Há apenas uma declaração de Dori, dizendo que fez Saveiros “muito alta”. Nana tinha vergonha da voz rouca no início da carreira e cantava em tons muitos altos, aproveitando-se de seu treino técnico. Sua musa era Isaurinha Garcia. Foi o que a levou a parecer esganiçada na interpretação de Bom Dia, composição dela e do então marido Gilberto Gil, que ela classificou no ano seguinte, em 1967. Foi outra saraivada de vaias devidamente escondidas no documentario. 

Depois que passou a cantar em tons mais baixos, usando músicas mais adequadas a sua voz, Nana enfim se encontrou. Talvez por isso tenha se dado tão bem interpretando Dolores Duran em As Canções que Você para Mim, seu melhor cd, usando sua enorme sofisticação para regravar sucessos da Era do Rádio e das cantoras de voz forte como a dela. Ou mesmo o pai, como em O Mar e o Tempo, no qual nunca Dorival, logo ele, tão alegre e bonachão, pareceu tão melancólico.

Mas isso não é assunto para o diretor. Gachot quis mesmo foi criar uma áurea para Nana e contou com a ajuda de várias pessoas que, diante das idiossincrassias da artista, repetem: “diva”.

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