Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Era para ser um filme sobre a vingança de uma mulher contra um adolescente, mas acabou recebido como uma grande história de amor.

7,5

Em 1998, o cineasta polonês Krzysztof Kieslowski, então completamente desconhecido, venceu a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo com Não Amarás, filme concebido para ser uma vingança de uma mulher mais velha contra um adolescente voyeur que lhe atazanava a vida, mas acabou recebido, no Brasil e em todo o mundo, como uma grande história de amor (atriz e diretor nunca entenderam o porquê).

Kieslowski é mais conhecido do grande público pela Trilogia das Cores (A Fraternidade É Azul, A Igualdade É Branca e A Fraternidade É Vermelha), que ele realizou na França nos anos 90, filmes deliciosos e irresistivelmente cafonas. Para muitos, seu melhor ele fez na sua Polônia natal, nos anos 80: Não Amarás e Não Matarás, além do estranho e enigmático A Dupla Vida de Véronique.

Não Amarás, esse pequeno filme sobre o amor, seu título americano, conta a história, tristíssima, de um rapaz de 19 anos que se apaixona por sua vizinha do prédio em frente e passava as noites lhe vigiando por meio de uma luneta. Ele trabalhava numa agência do correio e lhe mandava avisos falsos de correspondência só para que ela comparecesse à agência e pudesse vê-la pessoalmente por alguns minutos. Quando ela recebe uma visita íntima, digamos assim, ele liga para a companhia de gás alertando de um vazamento falso para que os funcionários interrompessem o momento do sexo. É comovente. Acabará em tragédia.

O rapaz acaba se empregando de leiteiro (estamos nos anos 80, na Polônia comunista ainda havia entrega de leite em garrafas de vidro de porta em porta) para poder ter mais um tipo de contato com a amada e Kieslowski da início a uma sucessão de metáforas sobre o leite, em especial o derramado, que pode representar desde os significados tradicionais, mulher, amamentação, vida, saciedade, como alguns inusitados. Ele ficava no quarto só tomando chá enquanto no quarto em frente tinha o suculento leite, sinônimo de fartura, desejo, assim como, em outras cenas, a própria solidão da mulher, o esperma do rapaz, lágrimas e, por fim, no belo final, um possível entendimento.

Tanto Não Amarás como Não Matarás são duas obras tiradas de dois episódios de O Decálogo, série em dez episódios, como diz o nome, baseado em cada um dos dez mandamentos da Bíblia - Não Amarás se ressente disso e parece mesmo um episódio espichado. Kieslowski, católico praticante, usava a religião, então proibida pelo comunismo na Polônia, para criticar o regime, que acabou ruindo, deixando a Polonia destruída. Kielslowski foi ardoroso defensor do sindicalista Lech Walessa, que promoveu as reformas e a abertura do país ao mundo, um governo bastante controverso e criticado.

Kieslowski filma a mulher com os olhos de um conservador católico que ele era. Ela é ''liberada'', independente, faz sexo com varios homens, mora sozinha. A posição do diretor para esse tipo de comportamento é crítica, mas nunca o conservadorismo católico teve em suas hordas um artista tão delicado e refinado, vendo seus personagens com tanto carinho que, mesmo lhes criticando, jamais lhe nega seu esplendor humano. O filme é, assim, universal. Mesmo para quem não acredita nos dogmas católicos, é possível acompanhar a beleza do filme, uma vez que o interlocutor tenha idéias bem diferentes do espectador, mas ele é tão bem articulado e tem um olhar tão original e caridoso, que a experiência se torna instigante.

Muito se falou, na época, do caráter hitchcockiano do filme, que remete à Janela Indiscreta. Mas Hitchcock, protestante, filmou a culpa, como a curiosidade e a bisbilhotagem podiam mostrar o lado  mesquinho nos homens, de ambos os lados, tanto de quem olha quanto o vigiado. Kieslowski, católico, filma a solidão, a tristeza, a falta de comunicação, a incompreensão e o isolamento do homem moderno. Não poderia ser mais diferente, tanto na forma quanto no conteúdo.

O final, tão belo, foi um pedido da atriz ao diretor, que queria no cinema um desfecho um pouco mais feliz do que o episódio original, que termina com o suicídio do rapaz. Kieslowski a faz entrar no quarto do voyeur e ela vê, pela luneta, a si mesma, justamente na cena do leite derramado. É quando as duas melodias criadas pelo musico Zgibnew Preisner para a trilha do filme se misturam e a trilha dela vai se tornando, lentamente, a dele: voyeur e solitária trocam de lugar e podem, enfim, compreender um ao outro.

Comentários (0)

Faça login para comentar.