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Críticas

Cineplayers

Corações roubados.

5,0
O novo filme de Felipe Bragança, Não Devore Meu Coração (idem, 2017), mistura dois cinemas distintos em um só. De um lado, uma trama com um fundo de denúncia e análise social sobre a vida de brasileiros e guaranis em uma cidade fronteiriça do Mato Grosso do Sul; do outro, um filme de ação, com ares de anos 1980, comandado por motoqueiros em constantes rachas na disputa de poder. A maldição que assombra a região há séculos, desde antes da Guerra do Paraguai, causa divisões e barreiras geopolíticas, sociais, culturais e linguísticas entre os brasileiros e paraguaios, em especial entre fazendeiros e índios. Ainda hoje, tanto tempo após os conflitos que deram início a essa rivalidade, permanece certo rancor entre os lados, alimentando constantes disputas menores entre civis. O rio Apa, divisa natural da fronteira e um dos elementos de culto da cultura indígena, marca o alegórico embate que serve de fundo para a história entre uma índia guarani chamada Basano e um pré-adolescente brasileiro chamado Joca, filho de um fazendeiro. 

A narrativa se fragmenta diante da visão dos conflitos filtrada ora pelo olhar das crianças que herdaram todo o ódio dos antepassados, ora pelo núcleo adulto de gangues de motoqueiros que vivem medindo forças em corridas ilegais. Os dois polos se cruzam a fim de oferecer perspectivas distintas sobre os mesmos temas, residindo na percepção infantil a esperança de conciliação que há muito foi perdida no local. Indo além, Bragança constrói toda uma unidade de ações comandadas por personagens masculinos, a fim de criticar a estrutura patriarcal que origina grande parte das mazelas que assolam o local, de modo a contrastar com três personagens femininas e o combate direto e indireto de cada uma contra esse estado das coisas. Flertando com o cinema de gênero, os anos 1980 de Walter Hill e similares é lembrado no acabamento estético e na trilha sonora. 

Embora seja uma proposta interessante, o cruzamento dessas muitas ideias resulta em um filme pouco fluente, carente de uma atmosfera capaz de envolver tudo em algo orgânico, com encaixe. Bragança tem muita afetação e uma necessidade recorrente de procurar por um lirismo e uma poesia em cada singular cena e, na maior parte delas, nunca os alcança de fato. Os dramas e conflitos entre os personagens também são estabelecidos de forma muito expositiva através de um roteiro que não confia nas imagens e a todo o momento explica em pormenores o que está acontecendo, o que cada um sente, qual o passado que os assombra. Enquanto o elenco de não atores, em maior parte indígena, confere muita autenticidade, quase todos os atores brasileiros se encontram deslocados e Marco Lori simplesmente destoa em uma composição caricatural. 

O destaque positivo nesse meio todo é justamente as três personagens femininas que contrapõem aquele sistema patriarcal. Bosano, Lucía e Joana simplesmente não se encaixam naquele universo, são propositalmente deslocadas e dessa forma expõem o quanto essa rivalidade é retrógrada, desnecessária e causadora dos maus que acometem a região há séculos. Por não se curvarem ao ciclo vicioso masculino de competição, corridas e infindáveis revanches e represálias, elas oferecem uma perspectiva muito realista e racional, cientes de que aquilo não terá fim, porém distantes o suficiente para não se deixarem fazer parte. Joca, garoto jovem e esperançoso, que teve seu coração devorado por Bosano, será o fio condutor numa jornada em que começará criança e terminará abatido pelo inevitável que continua a sugar todos os rapazes que passaram por isso antes dele. 

O acerto de Bragança é conseguir transitar entre os dois lados e nunca defender ou acusar nenhum, o que seria desastroso. Ainda que errante e perdido em procura de uma identidade visual que o diferencie, o diretor tem o tato de não cair na inocência de trazer respostas a um conflito entre brancos e índios que, por essência, é raiz da história de nosso país e até hoje reverbera nas relações sociais modernas. Ainda são muitos os corações roubados e abandonados no rio Apa, e aquelas águas sagradas ainda hão de lavar o sangue de muitos inocentes antes que possa surgir uma solução. Até lá, o fio de esperança repousa no olhar tão adulto da menina índia que aos 15 anos parece carregar em seu peito o vazio do mundo. 

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