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Críticas

Cineplayers

“I’m not a folk singer”: seis rostos para compôr o retrato de uma vida inteira.

9,0

Todd Haynes me inspira duas certezas: (1) ele adora a Juliane Moore e (2) gosta de contar histórias sobre personalidades em constante mutação.  Por isso, seguindo a linha começada por Velvet Goldmine (em que Haynes traça, a sua maneira, uma cinebiografia do camaleão Bowie), ele traz agora sua versão sobre Bob Dylan, cuja vida é tão multifacetada quanto a de qualquer bom ícone da música pop.

E são as incertezas e transformações, que pendulam entre sucesso e ocaso, que fazem da vida de Dylan um mote interessante. E Haynes capturou a essência disso diretamente das letras e das declarações dele em entrevistas. De autoditada (aos 10 anos Bob Dylan já compunha e tocava violão e piano por conta própria); passando por sua fase de cantor folk de sucesso (cujas canções foram classificadas como hinos de protesto contra um sistema de acumulação e desrespeito à humanidade); em seu estrelato como rockstar, em turnês de centenas de shows, chegando até sua conversão religiosa. E em todas essas situações, Bob Dylan possuía uma postura e um rosto, no que Todd Haynes usou de uma licença poética interessantíssima: para cada uma dessas fases, um ator daria vida e rosto ao personagem principal.

Assim vemos Marcus Carl Franklin, um garoto negro com sotaque de americano-nascido-em-Minnesota, interpretando os primeiros passos e a inocência do cantor, que ainda não havia encontrado a direção que sua música deveria seguir, para então ser engolido por uma baleia e descobrir lá dentro que deveria cantar o seu tempo e as suas dores.  Christian Bale interpreta o folk-singer, cuja carreira foi chancelada por Joan Baez (participação especial de Juliane Moore no papel), e cujas críticas em forma de poema eram exatamente aquilo que sua geração pedia; aquele que era denominado como "a voz do povo". Aliás, os pôsteres e fotos de Christian Bale imitando os primeiros discos e fotos públicas de Dylan garantem nota 10 à produção do filme. E não apenas por esse detalhe em particular, mas por toda a recomposição de diversos figurinos e situações registradas na história do músico.

Acontece que, no coração de Bob Dylan as inquietações eram enormes. Para explicitar isso, Haynes nos mostra um alter-ego do cantor, autodenominado como Athur R-i-m-b-a-u-d, um dos poetas que o poeta talvez quisesse encarnar. Ben Whishaw interpreta essa espécie de consciência-suprema e onisciente, revisando seu próprio passado e tentando aprender com os próprios erros.

Entra em cena também o melhor de todos os Dylans: Cate Blanchet. Ela interpreta o músico em sua fase rock, em sua conturbada turnê inglesa e o acidente de moto que o fez dar um tempo da estrada. É ela também quem encarna a guerra de nervos entre ele e um apresentador da BBC de Londres (cujo verdadeiro nome eu desconheço) e sua troca de farpas. Ela é a porta-voz dessa inquietação interna do músico, que em algum momento pergunta ao entrevistador “e é você quem deve me dizer o que devo sentir?”, quando o então astro foi questionado sobre uma possível falta de coerência entre as letras politizadas de seus sucessos folk e sua chegada ao estrelato pop com letras que versavam sobre amor, dor, bebedeiras e carroneiros, temas esses considerados irrelevantes.

É dela também uma das primeiras cenas, a que vemos Dylan no caixão, teoricamente sendo dado como morto, talvez numa alusão a seus diversos sumiços ou recolhimentos, nos quais ele voltava a ser qualquer-um, usando sempre um nome diferente. Aliás, voltando a falar de Blanchet, o filme é dela. Quem disse que ela poderia ser um bom Bob Dylan, merece meu respeito.

E, em meio a isso tudo, o filme mostra também a vida cotidiana do senhor Robert Allen Zimmerman (nessa fase, sendo interpretado por Heath Ledger), seu casamento mais longo (com Sara Lownes, interpretada por Charlotte Gainsbourg) e seus problemas pessoais.

Ainda temos Richard Gere, num momento Dylan-homem-comum, defendendo a cidade onde vive de um extermínio brusco, em troca da construção de uma estrada de quatro pistas. E Christian Bale interpretando o Dylan-convertido, que depois de tantas discussões com O Próprio, resolveu entregar-se a ele.

Todas essas passagens misturam-se na tela, sem preocupações com o que veio no final ou no começo, marcando o tempo no filme com as mudanças do próprio personagem e sua música.

Vale ressaltar ainda: a forma do filme, em alguns momentos imitando aqueles documentários de TV sobre a vida dos famosos; o encontro de Dylan-Blanchet com outro poeta que o inspirou, Allen Ginsberg; o encontro entre ele e os Beatles, numa cena hilária; seu envolvimento mal-sucedido com uma famosa mulher, chamada no filme apenas de Coco e interpretada irreconhecivelmente por Michelle Williams; e a frase que empunhava na maleta de seu velho-violão: Essa máquina mata fascistas! Todo um universo reproduzido com delicadeza, e alguma liberdade poética, com certeza. Mas o próprio Bob Dylan-Dylan aprovou o filme, e tudo está muito bem.

Como final, fica a dica de Dylan-Rimbaud, para aqueles que estiverem um dia em seu lugar, ou em algum patamar um pouco abaixo, porém não menos complexo: nunca crie nada! Você será eternamente perseguido por isso!

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