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Críticas

Cineplayers

Mark Romanek faz um filme incômodo entre a ficção científica e uma fábula sobre a perda da inocência para discutir a crueldade humana.

7,0

Não me Abandone Jamais é o tipo de filme que quanto menos se sabe ou se lê a respeito antes de assisti-lo, melhor será para a experiência cinematográfica. Dirigido por Mark Romanek, é uma adaptação do livro homônimo de Kazuo Ishiguro. Em termos de gênero, poderíamos dizer que se trata de um drama histórico de ficção científica ou de uma fábula fantástica sobre a perda da inocência. Mas nenhuma dessas classificações consegue de fato abarcar o clima de estranheza que perpassa toda a história – clima que é um dos pontos fortes do filme, aliás.

A narrativa gira em torno da personagem de Kathy H. Ao se deparar com o fim próximo da sua carreira como cuidadora, ela relembra os anos que passou no internato de Hailsham, com os amigos Tommy e Ruth, entre as décadas de 1970 e 1980. Kathy, Ruth e Tommy a princípio parecem órfãos comuns vivendo um triângulo amoroso e os conflitos da juventude. Mas não demora para descobrirmos – junto com os personagens – que eles não são crianças como as outras. Nesse mundo fabuloso, a medicina tornou-se capaz de erradicar todas as doenças graças aos avanços das técnicas de clonagem e doação de órgãos. E é disso que se trata: todas as crianças de Hailsham são clones humanos criados exclusivamente para tornarem-se doadores de partes dos seus corpos – uma, duas, três, ou quantas vezes aguentem até o fim. O único desvio nesse caminho é o de tornarem-se cuidadores, como Kathy. Ou seja, pessoas que auxiliam os doadores de órgãos. Mas, após alguns anos de serviço, os cuidadores também são obrigados a cumprir sua função de doar.

É quase impossível não comparar essa trama à livros e filmes de ficção científica clássicos como Blade Runner - O Caçador de Andróides (Blade Runner, 1982), Admirável Mundo Novo, livro de Aldous Huxley publicado em 1932, e 1984 (Nineteen Eighty-Four, 1984), baseado no livro homônimo de George Orwell de 1948. A criação de humanos de segunda classe, o controle excessivo sobre as pessoas, o adestramento dos corpos são temas presentes em todas essas histórias. Nessa relação, Não me abandone jamais mostra-se um filme frágil, que talvez sobreviva pouco tempo em nosso imaginário. Ainda assim, com algumas características cinematográficas que o tornam singular.

Uma dessas características é a escolha de narrar a história sob o ponto de vista de Kathy e de seus amigos, sendo este um dos grande trunfos do filme. Há o tempo inteiro uma aceitação passiva pelos personagens do seu destino cruel: de terem sido criados para sacrificarem suas vidas por outras. Passividade que podemos tentar entender pela forma como Kathy, Ruth e Tommy (e todas as outras crianças de Hailsham) foram criados: os corpos domesticados e controlados o tempo inteiro e com um conhecimento sobre o mundo limitado aos muros do internato e aos interesses da sociedade. Tudo o que eles sabem sobre a vida é o que lhes foi dito pelos professores e tutores da escola.

A cena em que eles descobrem a sua condição como clones doadores é um exemplo disso: eles não manifestam raiva e nem tristeza excessiva; no máximo, certa melancolia, que passa a acompanhá-los. Essa submissão cega é um grande incômodo para o espectador, que espera uma revolta ou uma fuga. Mas é também isso que comprova a eficácia do universo ficcional da história: há um domínio completo da sociedade sobre aqueles corpos clonados, sobre os seus sentimentos e a sua capacidade de reação – estão definitivamente condenados, amortecidos.

Resta a quem assiste ao filme também submeter-se a inevitabilidade dos fatos e seguir descobrindo a trama junto com os personagens. Sempre sabe-se tão pouco quanto eles sobre o mundo em que vivem. Assim, resta a sensação de estar perdido. Faltam referências e os fatos nunca chegam de uma vez só ou de forma completa. Quantos outros clones doadores existem? Existíria algum tipo de resistência à essa prática? Ou a sociedade realmente não se importa que as vidas dos clones sejam sacrificadas para salvar outras? São algumas das questões que surgem e que a narrativa responderá apenas de forma vaga. Pois, é dessa forma incompleta que saberão os personagens.

Uma única cena contrapõe Tommy e Kathy, já adultos, à sociedade que os cerca. Isso ocorre quando eles vão procurar Madame Marie-Claude, a responsável por uma galeria de arte que exibia o trabalho das crianças de Hailsham – pelo menos, essa é a profissão que eles acreditavam que ela possuía. Na casa de Marie-Claude, eles reencontram a diretora do internato, Miss Emily. Mais uma vez, algumas verdades cruéis são derramadas sobre os personagens. Nesse momento, Miss Emily coloca em questão justamente a existência de alma nos clones doadores. Essa discussão conecta o filme a vários dos debates que a humanidade já atravessou: foi a problemática com a escravidão africana, com o massacre dos povos nativos da América e mesmo com os judeus no Holocausto. Questão humanista que poderia ser resumida como: é possível achar no outro, no diferente, uma alma humana que o faça se equivaler a quem o oprime? Essa pergunta nos parece ser a moral dessa fábula terrível – e tão próxima de algumas das maiores barbaridades da História.

Assim, por mais que o espectador se identifique, até por uma questão de ponto de vista do filme, com Kathy e seus amigos, não há espaço para sentimentalismos na narrativa. O clima que predomina é frio, duro, cinzento, sem esperança. Essa equação entre afeto e crueldade nem sempre é bem resolvida na representação. O que em alguns momentos torna o ritmo do filme estranho e a capacidade de envolvimento com a narrativa limitada. Ainda assim, há um mérito muito grande no incômodo com o qual o filme nos deixa.

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