8,0
Recém-chegado a Arles, sul da França, Vincent Van Gogh é perguntado pela Madame Ginoux o que lê. “William Shakespeare”, responde ele, então explicando o motivo de seu fascínio pelo Bardo do Avon (“porque ele é misterioso”) e do que trata sua obra: “Homens e mulheres. Deuses e reis. Amor e ódio”. Esse fragmento de diálogo resume a lógica essencial de No Portal da Eternidade, porque sintetiza o próprio artista biografado: mistério, dualidade, contradição. E uma genialidade que só seria aceita décadas mais tarde, mas baseada em uma complexidade — dentro de si e em sua relação com o exterior — e uma singularidade reconhecidas em vida e que, por isso, serão a base desse novo projeto de Julian Schnabel.
Corroteirista ao lado da estreante (e namorada) Louise Kugelberg e do veterano Jean-Claude Carrière (O Discreto Charme da Burguesia), o cineasta de O Escafandro e a Borboleta instaura esse conceito desde a primeira sequência. Após uma narração poética em que o protagonista conversa consigo mesmo (e com o espectador), a tela escura se rompe para uma câmera subjetiva em tom solar, expondo uma forma acalorada de enxergar o mundo que se choca com sua alma e seus pensamentos sombrios. No instante seguinte, uma camponesa o encara (e ao espectador) com uma expressão amedrontada que destoa totalmente do cenário idílico que toma o quadro e da fragilidade que Van Gogh transmite em palavras. No Portal da Eternidade é um filme todo baseado no paradoxo que marcou o artista — um gênio imortal que viveu como um pária.
O roteiro é inteligente, caprichando na dramaturgia e dando margem à imagem para apresentar a obra, a influência e a psique de Van Gogh. O principal elemento a serviço disso é um brinde da História: a relação entre o biografado e Paul Gauguin. Interpretado de modo vibrante por Oscar Isaac, o pintor francês é o perfeito contraponto de Van Gogh: firme, idealista, racional, um artista de sucesso que atua empenhado em liderar uma nova revolução cultural. Van Gogh é inseguro, visceral, pinta segundo sua intuição e tem a certeza de que seu valor será um dia reconhecido, embora resignado de que somente após sua morte. Os embates entre Van Gogh e Paul Gauguin descortinam as personalidades e o processo criativo de cada um, em sequências em que Julian Schnabel tem a extrema felicidade de atrelar esse bom conteúdo à forma.
“A pintura deve ser feita rápido”, diz Van Gogh, e vemos sua impulsividade em cena, com o personagem abrindo seu cavalete às pressas, mal organizando as tintas e se pondo a pintar de maneira febril (o que explica seu impressionante número de telas). Do mesmo modo, uma câmera delirante e vertiginosa, que passeia pelo chão, se junta aos corpos, está sempre sem eixo e ora serve ao campo onírico evoca, pontualmente, a mente confusa de Van Gogh. Combinada com uma incrível trilha sonora ao piano e uma direção de arte crua e imersiva em seu tempo passado, a fotografia deslumbrante de Benoît Delhomme muito explora a câmera subjetiva como forma de ilustrar a visão de Van Gogh enquanto pessoa (atormentada) e artista (um talento incompreendido que via arte em cada choque do olhar com o exterior, e a vertia em pintura como ninguém). Não à toa, por diversas vezes, Julian Schnabel brinca de criar planos que emulam quadros icônicos do pintor holandês. É essa riqueza estética e narrativa, em perfeita consonância com a matéria-prima artística da cinebiografia, que sustenta a sessão nos (vários) momentos em que o longa-metragem se arrasta. E faz jus à estupenda atuação de Willem Dafoe.
No auge da carreira, o ator norte-americano incorpora o personagem e interpreta todas as suas contradições com uma propriedade impressionante. Nas calorosas discussões entre Gauguin e Van Gogh, Dafoe imprime tamanha fragilidade e inocência que ele próprio até soa (assim como o protagonista em relação ao pintor francês) mais novo que Isaac, 24 anos mais jovem. No clímax do filme, em verdadeiro duelo sobre arte, religião, filosofia de vida e modo de ver o mundo com o pastor vivido por Mads Mikkelsen (em participação curta e grandiosa), o ator se expressa com uma lucidez não vista antes na projeção justo no momento em que Van Gogh veste uma camisa de força — momento este em que surge um bonito paralelo entre as trajetórias de Vincent e Jesus. A atuação complexa de Willem Dafoe, enriquecedora da ambiguidade do personagem, representa com perfeição os autoproclamados "defeitos e qualidades” que moviam o caótico pulso criativo do autor de A Noite Estrelada.
No Portal da Eternidade só termina após os créditos finais, com uma linda cena que integra rima visual com a abertura do filme e todos os momentos em que Van Gogh, em voice over sobre tela negra, discorria sobre si, sua visão, seus temores, seus demônios. Aqui é Gauguin, em um plano singular (talvez único no cinema, de narração sobre uma tela completamente amarela) no qual reconhece o talento do amigo como tão poucos fizeram à época. Somente Aurier foi tão enfático, em crítica publicada na Mercure de France em janeiro de 1890, a seis meses da morte de Vincent Van Gogh. O texto disseca a arte e a personalidade do gênio holandês, profetiza seu ingresso na eternidade e ainda serve como descrição do sucesso de Julian Schnabel em sua cinebiografia sobre Vincent Van Gogh:
“Uma estranha natureza, ao mesmo tempo verdadeiramente verdadeira e quase sobrenatural, uma natureza excessiva em que tudo, seres e coisas, sombras e luzes, formas e cores, se subleva, se levanta numa vontade raivosa de gritar sua própria e essencial canção, no timbre mais intenso, mais ferozmente agudo… é a matéria, a natureza inteira retorcida de maneira frenética, elevada ao paroxismo, erguida aos ápices da exacerbação; é a forma se tornando o pesadelo, a cor se tornando labaredas, lavas e pedras preciosas, a luz se fazendo incêndio, a vida febre ardente…”
Filme visto no Festival de Cinema do Rio de Janeiro
Deus tá vendo Academia desprezar um ator sensacional que nem Dafoe em nome de lobby. Depois vai querer dar Oscar honorário ou sei lá o quê hahaha
Se esse concorresse a melhor filme no lugar de Vice, Green Book ou Bohemian Rhapsody a seleção ficaria tão melhor...