Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

"Nova York, esta noite…"

9,5
Quatro anos antes que o destroçado resultado de uma relação edipiana desse contornos ao suspense filmado mais famoso da História, o Psicose (Psycho, 1960) de Hitchcock, um serial killer escreveria com batom nas paredes de um apartamento, encoberto pelas trevas da Nova York noturna, como que para lançar pistas irônicas a quem futuramente quisesse encontrar sua identidade: ''pergunte à mamãe'' - diz a lápide temporariamente trágica da bibliotecária assassinada. Bibliotecária esta que, momentos depois, por mais uma grotesca ironia das tramas (fílmicas e, sabe-se lá, do destino), dividirá seu pequeno apagamento com a também morte do magnata Amos Kyne, empreiteiro do maior império jornalístico da grande maçã. 

Delimitam-se, assim, e em poucos minutos, duas coisas, a primeira delas sendo o tom fantasmático para esta obra de Lang, o que nos faz inferir que toda grande manchete jornalística acompanhará uma pequena tragédia pessoal, como se os caprichos do assassino estivessem religiosamente ligados às agruras dos relacionamentos entre os personagens; a segunda, a confirmação de Lang de um caráter ancestral, e precisamente por isso faz-se necessário que ele ecoe até que não haja mais vida para escutar: toda grande obra trágica é também uma obra cômica – mas só os gênios saberão criá-la.

Pode-se levar a crer, por indução narrativa ou mero favoritismo heroico, que Ed Mobley (Dana Andrews) concentra para si o protagonismo de No Silêncio de Uma Cidade (While The City Sleeps, 1956), e de fato, maior atenção é debruçada sobre ele, mas o que parece imperar aqui é uma noção que Lang sempre importa para seus filmes, e segundo a qual o protagonismo, o destaque, o direcionamento do olho sempre deverá favorecer a tecelagem das relações em detrimento de um ou dois personagens que carreguem nas suas costas maior minutagem de tela. Porque se o uso da namorada de Mobley como isca para o assassino parece, aos nossos olhos, depois de selado o beijo  que adiciona mais uma camada tonal ao filme – a de uma lovestory –, uma prova de amor absoluto, o que na realidade acontece é um jogo com dois anseios espectatoriais que podem se confundir, mas na realidade são distintos, e que acabam por se unir: não querer que a noiva morra e querer que o casamento se consume. Vida pessoal e operação jornalístico-social mais uma vez se tocam.

Mas eis que uma única história pode conter ainda mais: para além do maniqueísmo tolo ao qual Lang nunca havia se afiliado, bem debaixo da teia intricada de relações que a morte de Kyne suscita a partir de uma corrida ao poder, há ainda algo a se atestar, um algo que, se não desmente, tenta desmascarar parte da análise fílmica que costumeiramente se faz sobre a filmografia de Lang. Não há personagens essencialmente maus em sua obra e tampouco personagens divididos entre o bem o mal. Aliás, daqui decorre um erro que se afilia mais ao entendimento das coisas como são ditas do que a uma concepção de personagens. Se se diz que uma pessoa é má, aí está inferido que ela não pode ser qualquer outra coisa? Por acaso um dizer é um ato totalitário? Pretende-se, aqui, burlar até mesmo as qualidades e seus negativos. Porque no final das contas, e é isto que os personagens de Lang talvez queiram nos dizer, diante de cada pessoa, delineia-se uma situação diferente, anseios e desejos e não-desejos distintos. Ser alguém implica sê-lo multiplamente, não resumir-se a duas coisas, e ser também as consequências disto. 

Nesse arranjo de multiplicidades, sempre sob o véu da noite, vemos escancaradas as mutações daquilo que já estava estabelecido magistralmente em menos de 40 minutos de projeção: traições, usos e desusos, atrações desviadas e redirecionadas ao sabor de terceiros e quartos, permissividades às cegas, relações que se tornam mais orgânicas do que jamais haviam sido, outras que se mecanizam, criam dependências e dependentes para logo após se desestruturarem novamente. Todas com um denominador comum: a amargura ''Langiana'' da baixeza, o rasteiro do humano de mil faces. 

Comentários (0)

Faça login para comentar.