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Nosferatu: O Vampiro da Noite

(Nosferatu: Phantom der Nacht, 1979)
7,7
Média
152 votos
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Críticas

Cineplayers

Nosferatu como reflexo das sombras da Alemanha do século XX.

8,0

A aparição do vampiro desalmado em direção à sua vítima em um momento-chave de Nosferatu (Nosferatu, eine Symphonie des Grauens, 1922), clássico do terror de F.W. Murnau, reúne em si as muitas significâncias que esse personagem adquiriu quando transmutado para uma tela de cinema. No romance original de Bram Stoker, a exploração da mitologia dos vampiros vinha como uma aventura gótica que revolucionou toda a cultura pop daquela e de todas as gerações desde então, enquanto no cinema o personagem ganhou uma incorporação horripilante sob a concepção visual expressionista de Murnau. Dentre todas as leituras feitas ao longo dos anos, o Drácula do cineasta alemão foi visto como um símbolo da força sexual rompendo com os limites sociais, além de assombração reverberante dos efeitos devastadores da Primeira Guerra Mundial.

Werner Herzog viria a homenagear o filme de 1922 com Nosferatu: O Vampiro da Noite (Nosferatu: Phantom der Nacht, 1979), afirmando que não se tratava de um simples remake, mas uma forma de explorar novos significados e de esclarecer sua relação com o cinema alemão dos anos 1920. De fato, conceitualmente os filmes de Herzog e Murnau são praticamente opostos, mas ironicamente são resultados de circunstâncias muito similares. Enquanto Murnau era expoente do Expressionismo Alemão, Herzog fez parte da nouvelle vague germânica (embora o próprio jamais tenha se considerado participante do movimento); enquanto o Nosferatu de 1922 nascia indiretamente como fruto dos medos e fantasmas de uma guerra recente, o Nosferatu de 1979 traz em sua composição o acúmulo de traumas de uma Alemanha devastada pela Segunda Guerra e separada em duas pela Guerra Fria. Cada qual, indiretamente e sem intenção, acaba carregando consigo muito da influência política e social do país e, juntos, traçam um retrato da trajetória traumática da Alemanha pelo tumultuado século XX.

Rainer Werner Fassbinder, na mesma época e através do movimento do Novo Cinema Alemão, também desenvolveu uma interpretação dessa trajetória de sua terra natal por meio de personagens femininas fortes em filmes como O Casamento de Maria Braun (Die Ehe der Maria Braun, 1979), Lili Marlene (idem, 1981), Lola (idem, 1981) e O Desespero de Veronika Voss (Die Sehnsucht der Veronika Voss, 1982), enquanto Wim Wenders contribuiria com a obra-prima Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin, 1987). Contudo, nenhum desses trabalhos tinha um senso tão narrativo e de fácil identificação quanto Nosferatu, visto o terror ser um dos gêneros de maior apelo com o público, em especial com o personagem icônico em questão. A proposta de renovação estética aliada ao amor pelo cinema de gênero americano típica do movimento foi essencial para o sucesso do filme e abriu as portas para que Herzog viesse a realizar a futura obra-prima faraônica Fitzcarraldo (idem, 1982).

Acima de todas as semelhanças com a obra original e independente de seu contexto histórico, o filme em questão carrega uma série de particularidades que o justificam como único e extremamente autoral. A princípio, sua narrativa não está fragmentada em diversos personagens, tais quais as encontradas no filme de 1922 e no livro de Bram Stoker, e sim filtrada pelo olhar de Lucy (Isabelle Adjani). A personagem é colocada tão em primeiro plano que o próprio Drácula (vivido por Klaus Kinski em caracterização doentia) segue como uma espécie de sombra a acompanhá-la, disforme e sorrateira como uma assombração. A sequência inicial do filme remete a um sonho de Lucy, atormentado pelos mais diversos tipos de aberrações, e já denuncia o caráter sonhador e crédulo da personagem. É essa linha tênue entre realidade e fantasia que Herzog escolhe percorrer ao longo de seu trabalho, colocando Lucy como uma intermediária capaz de transitar nos dois lados. De forma magistral, Nosferatu se mostra um personagem muito mais real e humano que Lucy, além de uma vítima da sociedade e um ser solitário privado de amor e carinho.

A beleza da relação dos personagens está nesse dilema. Lucy é adepta ao crer, ao ato de exercer fé na fantasia que a atormenta, enquanto o vampiro, dentro de sua em tese irreal existência, anseia pela solidez do amor, um sentimento só possível para os que ainda estão vivos. Enquanto Lucy rodeia a morte e sua máscara de mistério e desafio, Nosferatu já se encontra morto, porém carente de qualquer solidariedade que expresse vida. A repressão sexual desenhada no vampiro do filme do Murnau é reproduzida aqui na personagem de Lucy, que alterca juntamente com Jonathan (Bruno Ganz) no terreno da expectativa excitante, seja da morte, seja do sexo. Tudo isso englobado em cenários pitorescos que Herzog jamais define como reais ou imaginários, como o castelo e o navio-fantasma. Nestes cenários, Nosferatu assume formas além da humana, além da patológica (quando associado com a Peste Negra), além da monstruosa, e se revela uma metáfora ambulante para a relação dúbia e etérea de Lucy e Jonathan.

Como que diante de um espelho rachado e empoeirado pelo passar dos anos, o Nosferatu de Herzog se reflete distorcido e cheio de fragmentos ante o vampiro do filme de Murnau, e carrega dentro de si uma ressignificação do personagem original e de toda a mitologia em volta de sua mística que hipnotiza e fascina tantos leitores e espectadores ao longo dos anos. Ainda se vale do conceito do Novo Cinema Alemão dentro de um gênero improvável como o terror, trazendo um Drácula que, a despeito da crueldade e da condição fria e desalmada de sua mitologia, se mostra nada mais do que a representação das vítimas das circunstâncias de um país que cambaleou ao longo de todo um século se arrastando na condição de morto-vivo.

Comentários (9)

Cristian Oliveira Bruno | quarta-feira, 25 de Março de 2015 - 16:32

Belíssimo texto. Um dos grandes filmes alemães do século. Herzorg sempre foi diferenciado.

Victor Ramos | quarta-feira, 25 de Março de 2015 - 23:08

Kinski é simplesmente uma das melhores coisas que já pisaram nesta terra.

Josiel Oliveira | quinta-feira, 26 de Março de 2015 - 14:25

Parabéns pela crítica, muito boa! Assisti agora esse filme que eu estava postergando já faz um tempo.
E que filmaço! Isso sim é que é uma refilmagem autoral. Toda a filosofia e o olhar do Herzog (do indivíduo, contexto histórico a parte) está lá, inclusive nessa nova concepção dos personagens. A atuação do Kinski dispensa comentários, e a Direção de Arte também merece muito destaque.

Caio Henrique | quinta-feira, 26 de Março de 2015 - 21:10

"Kinski é simplesmente uma das melhores coisas que já pisaram nesta terra."

Depois que você assisti ao documentário do Herzog "Mein Liebster Freund" e ao "Paganini" do Kinski não tem como pensar em outra coisa.

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