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Críticas

Cineplayers

A ausência de conflitos e o cinema de Hirokazu Koreeda.

8,0
Nossa Irmã Mais Nova chama atenção pela ausência de conflitos. À exceção de breves momentos em que a mãe das três irmãs aparece na cidade para prestar homenagens ao memorial de falecimento da avó, narrativa transcorre sem que haja colisões de ideias ou posições entre seus personagens. Uma escolha estrutural que não é apenas uma afronta à narrativa tradicional (japonesa ou não), mas também ao que estabeleceu-se como natural no cinema de Koreeda.

Ainda assim, há uma presença invisível no filme que vale ser observada cautelosamente. Assim como em Andando, a ausência de um personagem falecido é profundamente citada e sentida entre as irmãs, de maneira que mesmo sem aparecer, a figura do pai possa ser repetidas vezes descontruída. Ele varia entre momentos de afetos sinceros e momentos de verdadeira repulsa nas garotas. Diferentemente de Andando, porém, aqui a presença-ausência do pai é muito mais transversal: é apenas um elemento a mais na colcha de retalhos do filme.

(Há um motivo claro para utilizar essa espécie de personagem ausente: realçar as relações entre os personagens que de fato aparecem. Em As Mulheres, por exemplo, os homens da história são exaustivamente citados, tudo parte duma estrutura forjada ideologicamente no, pelo menos, proto-feminismo. O último filme de Resnais é, afinal, justamente sobre esse personagem que, mesmo invisível, promove abalos expressivos num grupo de personagens.)

As irmãs são obrigadas a confrontarem-se brevemente com a mãe no meio da história e a lidarem com a morte de um pai distante, mas o verdadeiro mote do filme é a justaposição de eventos que inserem a adolescente Asano na comunidade em que vivem as irmãs, enquanto estas continuam o transcorrer de suas vidas sem a presença de momentos grandiosos. Na verdade, o filme é dominado por uma doçura palatável. É até antinatural nesse sentido, já que mesmo a realidade, caracterizada pela ausência de esquema de introdução e resolução de conflitos, não pode ser tão doce.

Adaptado de um mangá formatado para o público feminino jovem (mangá josei, em oposição ao mangá shoujo, dedicado ao público feminino infanto-juvenil), o título original do filme traduz-se para algo como “diário da cidade costeira” (Umimachi Diary), antecipando a esquematização narrativa do filme, baseada em cenas individualmente sem grande profundidade dramática, mas que se ressignificam nesses termos ao serem somadas umas às outras, constituindo retratos verdadeiramente expressivos sobre os personagens apresentados.

Independentemente de como se formata, a real prova do fogo de Nossa Irmã Mais Nova é percorrer suas mais de duas horas sem entediar o espectador. É realmente possível esquematizar um filme sem que hajam conflitos narrativos ou interrelacionais entre os personagens? Ao menos de forma a entregar um filme que não seja esteticamente desafiador, restrito a nichos de público mais específicos?

O cinema de Koreeda é naturalmente amparado na sequenciação de eventos para formatação de sentidos. Seus personagens carregam marcas ou enigmas a serem desvendados. O espetacular de seus filmes é enxergar os desdobramentos de acontecimentos que proporcionam essa abertura, esse entendimento. O material original, se de fato similar ao que o filme é, encaixa perfeitamente com a mão do diretor.

Além, claro, da profunda ligação temática da história com o cinema de Koreeda. Os temas variam entre família, perda, peso da cultura na vida das pessoas, relação entre trabalho e vida pessoal e relação entre vida pública e vida privada. Nossa Irmã Mais Nova leva o tempo necessário para expor e desenvolver esses temas, praticando acima de tudo um cinema de afeto. Os corações partidos no meio do caminho dificilmente assumem-se como conflitos dentro da história. São apenas acontecimentos naturais que se integram às outras experiências vividas pelos personagens afim de compor o retrato supracitado.

As duas horas de filme transcorrem como um carinhoso afago sem que Koreeda pratique algum tipo de cinema não autêntico. Nossa Irmã Mais Nova é, acima de qualquer coisa, mais um exemplar autoral – ainda que adaptado – do cineasta japonês que desvenda trabalho após trabalho planos de fundos famílias fictícias diversas do Japão. Nesse ponto de sua filmografia, fica cada vez mais difícil arrolar em preferência os seus filmes. A satisfação maior, porém, é continuar testemunhando o desenrrolar da carreira de um diretor tematicamente decidido e que continua a operar, dentro de suas intenções e dentro do melodrama, as experimentações que tem se tornado cada vez mais constantes em seu cinema.

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