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Críticas

Cineplayers

Os protagonistas solitários de Ainouz.

7,5

A dentista Violeta, assim como o transformista João Francisco, protagonista de Madame Satã (idem, 2001), e Suely, de O Céu de Suely (idem, 2006), sente na pele a deslocação, o sentimento geral de não se enquadrar. Se era o que empurrava João para a marginalidade e Suely para a fuga de um ambiente opressor, Violeta, que mora em apartamento com vista para o mar, não sabe como proceder quanto a isso.

Abandonada pelo calado e soturno marido ainda no início do filme, seu dia desmonta; entre um táxi e outro que a levam para o aeroporto, que só tem viagem para dali a algumas horas, que a leva para a praia de Copacabana, onde encontra uma garota, Bel, e seu pai Nassir, abandonados pela mãe, que enfrentam condição de abandono parecida com a de Violeta, e mais física ainda, não tendo casa para morar.

Essa via crucis fragmentada, que começa com a protagonista recebendo o choque e ferindo o corpo acidentalmente, logo começa a despertar um filme menos sobre deslocamento e fuga, e mais sobre vagar sem rumo, com personagens que não têm certeza o que querem exatamente da vida, que sentem-se feridos, por dentro e por fora, e passam a maior parte do tempo calados, contemplando, com o drama interno explicitado ao mínimo: através de idas à boate, a pequenas reformas na casa, da respiração de Alessandra Negrini e seu deslocamento fantasmagórico sobre um Rio que não mais reconhece: nas sequências onde a praia é exibida, a fotografia é azulada e escura, o que faz o branco da espuma do mar e areia da praia saltarem aos olhos, enquanto todo o resto é engolido pelas sombras e tira do filme todas as respostas, todos os conflitos, e nos deixa apenas com a personagem e seu silêncio desconfortável, que passamos o filme tentando compreender.

No cinema de Karim, a unidade dramática tradicional já não faz tanto sentido: as angústias de seus personagens já não obedecem a curvas dramáticas habituais, não desenvolvem-se, não se superam. Tudo que é possível buscar nesses filmes é contato humano, alguém com quem compartilhar as angústias, nem que seja, nesse caso específico, apenas por uma noite. Inspirado livremente na música “Olhos nos Olhos”, de Chico Buarque, O Abismo Prateado, o filme, assim como a música, não é enigmático: é incompleto, assim como sua protagonista que, mesmo vivendo uma vida contemporânea para uma mulher, confunde-se no papel estereotipado que ainda persiste, onde a família nuclear é uma base que lhe concedia estabilidade emocional.  É na abstração que o filme conquista: na relação entre dependência e independência, de necessidade, de introspecção, de não saber o que é “ser no mundo” quando mal se sabe o que “ser para si”.

No ritmo de sua protagonista, o filme vai ganhando força não na tensão inicial e agressiva da protagonista, mas após isso, quando Nassir e Bel entram, onde Violeta e o filme parecem pôr os sentimentos em ordem: desaparece o barulho da boate, o barulho da construção, resta o silêncio do aeroporto, o som das ondas do mar, os travellings passam a serem mais suaves, os planos se tornam mais abertos, não exatamente com função descritiva, mas buscando todo um mundo novo, toda uma atmosfera nova que Karim mostra, mesmo em um filme que não se sobressai em sua carreira, ter pleno domínio. A indefinição inicial da obra, se superada, revela um drama íntimo, profundamente humano, onde pouco se diz e muito se sente.

A solidão dos protagonistas de Karim surgem na incogruência de cada um de nós: da dentista, do marginal, da mulher interiorana e do viajante de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (idem, 2009), o grande filme sobre deslocamento de Karim realizado junto com seu parceiro Marcelo Gomes, de Cinema, Aspirinas e Urubus (idem, 2005). Nenhum deles está a salvo de sair do padrão, de perder a estabilidade, todos eles estão sujeitos a enfrentar o ambiente onde vivem, os personagenns com que convivem, e essa é sua grande tragédia, de distanciar-se mas nunca saber para onde vai. É esse caráter errante do cinema contemporâneo que domina o cinema de Karim, que nunca prende-se a um só lugar, a uma só linguagem, a um só ideal estético: todos nos servem, a realidade é fragmentada, não sabemos o que estamos fazendo aqui, e justamente filmes como O Abismo Prateado que nos convidam a arriscar, no final das contas, um gostinho de liberdade que nem todos se dão ao luxo de experimentar.

Comentários (4)

Patrick Corrêa | quinta-feira, 02 de Maio de 2013 - 20:27

Crítica muito boa.
Ainouz vem me conquistando a cada filme seu sobre a sensação de deslocamento.

Gustavo Aguiar | sexta-feira, 03 de Maio de 2013 - 01:53

Achei genial a observação do Patrick Correa.

Lucas Souza | domingo, 05 de Maio de 2013 - 22:49

Achei genial a observação do Patrick Correa. 2

Patrick Corrêa | terça-feira, 07 de Maio de 2013 - 23:12

Obrigado!
Que bom mais gente gostar disso nos filmes dele.

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