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Críticas

Cineplayers

O gerente e o monstro.

8,0
Mais do que o flerte lésbico com o horror mítico nacional à la Jess Franco de Juliana Rojas em As Boas Maneiras (2017), que em sua segunda metade parece encolher o rabo do lobisomem entre as pernas e se acuar quase totalmente na intensificação do misto entre a delicadeza da infância e a monstruosidade velada, segregada, tornando-se um filme quase imperdoável pela irregularidade, não fosse, de fato, o primeiro ato feminina, cômica e sexualmente bem costurado através do horror – ainda mais bem contaminado com essa essência esquelética do gênero que oscila entre o horror e o suspense que o filme de Rojas, O Animal Cordial (2017), já em seus créditos iniciais com cartelas anatômicas entre a sombra e o vermelho sangue, parece torcer a garganta dos gêneros tipificados pelo cinema norte-americano para deixar que algo particular sobrevenha. 

Uma singularidade que pende em equânime potência criativa tanto para o estilo de Amaral – jogar com a multiplicidade de personas dentro dos personagens (redundância? Se sim, tanto melhor) enquanto eles mesmos não necessariamente evoluem, mas se “mutacionam” (neologismo que possa englobar a mutação e a rotação no próprio eixo) – quanto para essa guinada política que se utiliza de suas figuras internas, ainda, claro, nomeadamente os “personagens”, mas não para torná-los bandeirolas funcionais: antes, a consciência esperta de que se uma negra, a esta altura do cinema-contexto brasileiro, sempre guardará, em potência, algo que infira sobre questões raciais/coloniais/classistas, seja ela uma personagem desejosamente pensada sem qualquer relação política que a transcenda ou não, porque é possível, sim, fazê-lo – se uma negra pode assim existir no cinema brasileiro, por suas idiossincrasias de fabricação enquanto persona(s), Camila Morgado pode muito ser a madame perfumada, hipócrita, preconceituosa e solene que, viradas de trama paradoxalmente simples e impensáveis depois, que vão se instalando às maneiras de Cronenberg, pulsionais, monstruosas, orgânicas, torna-se uma psycho-fatale dúbia e ardilosa, partilhada conosco pelos golpes de direcionamento e perspectiva da câmera que emulam, enfim, os gêneros como os vizinhos de cima o fizeram.

E se situar é uma função do tempo na sucessão dos espaços, montados, evidentemente uma costura que relaciona partes e Todo, que Murilo Benício brote de seu hábitat natural, o restaurante La Barca, enquanto um Dr. Jekyll transformado em monstro numa cena absurda, minutos a fio diante do espelho que capta as micro-mutações, tão surpreendentemente quanto o próprio ator, que parece ter ressurgido no cinema nacional das mais antigas cinzas – que Benício se prove um constructo perfeito de personagem tanto quanto a parceira Luciana Paes, esta novata recém-absorvida, é uma prova, por rebatimento, do quanto Gabriela Amaral, diretora e roteirista, evoca o bom contador de histórias que sabe seduzir o ouvido(olho) de quem está diante dele.

E ainda assim, ainda bem depois que estabelece um padrão que suceda à explosão putrefata e assassina do gerente, que leva os astros circundantes e não menos importantes a delírios de fúria, possessão sexual, crise existencial e, não se pode negar, sim, alguns arroubos melodramáticos demais que tentam tangenciar certa política, esse animal cordial (personagem, não título) consegue assustar tanto quanto é sedutor. Possível melhor personagem masculino do cinema brasileiro em anos, o gerente caipira viajado, forçosamente domesticado e connoiseur de vinhos, das mutações que fazem emergir o instinto à superfície, é tão brusca e deliciosamente modulado quanto a garçonete Sara, que se traveste, em menos de 2 horas, de feiona apaixonada, ajudante quase chegada ao nulo de si mesma, femme fatale, madame como ponto de fuga ideal, revoltada de classe e xamã sexual, entre outras máscaras que o ritmo e a multiplicidade de outras personas em cena não permite captar. 

Se algum aspecto cintilante Gabriela Amaral de fato apropria da Hollywood que glamourizou os gêneros à passionalidade imortal da paixão pelas imagens, este talvez não tenha sido de fato a caixinha de propriedades simuladas e reformuladas dos gêneros, mas a capacidade, ainda viva, ainda explosiva, do imaginário de articular aquela que é a singularidade mais pura do cinema: uma farsa do primeiro ao último segundo, mas tão crível que chegue a ser mais real que o próprio real, o rombo numa parede que encaminha ao sonho mais paradisíaco e horrível. 

Visto no Janela de Cinema do Recife 2017

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