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Críticas

Cineplayers

O cineasta como sujeito.

9,0
Há algo sobre a relação de Werner Herzog com as grandes vidas que precisa ser cuidadosamente analisado. Não se fala em grandes vidas para descortinar um sentido de grandiosidade em si, de uma herança qualitativamente notável ao mundo por parte desses sujeitos; antes, de vidas que foram potentes dentro de si mesmas, do que ousaram nas zonas limítrofes de seus próprios invólucros – que o resultado disto tenha ecoado no mundo é uma consequência, uma história para que outros a decifrem. A questão é que do Timothy Treadwell de Homem Urso (Grizzly Man, 2005), passando por Dieter Dengler, a recente Gertrude Bell de Rainha do Deserto (Queen of the Desert, 2015), e até mesmo pelos primeiros homens do planeta, como imaginamos através da Caverna dos Sonhos Esquecidos (Cave of Forgotten Dreams, 2010), há uma imensa inclinação do cineasta em direção a essas subjetividades que, confrontadas dentro si próprias, deixaram suas marcas naquilo que hoje percebemos. Mas antes da consequência, a causa: para imprimir a vida no mundo, é preciso vivê-lo.

Dentre as diversas diferenças entre um modelo clássico do ''gênero'' documentário e um mais moderno, está precisamente a proximidade que a câmera-cineasta ensaia com os sujeitos, com as vidas ordinárias e aquilo que elas podem relatar, eclipsando um estilo específico e hegemônico de voz over que simula – e logra naquilo que busca – uma superioridade de conhecimentos e posição em relação àquilo sobre o que está se tentando formular um discurso, o que, nessa virada ético-tecnológica é esse conjunto de experiências para as quais o cinema raramente tinha depositado um olhar. Eu, voz sobre todos os seres, não me exponho mais em assertivas homogeneizadoras e didáticas. Agora reflito, pondero, inquieto-me, não tenho mais certezas, mas sobretudo dou lugar de fala ao outro. 

Pois quando metade d'O Diamante Branco (The White Diamond, 2004) já se passara, quando já nos fora apresentado o conflito interior do engenheiro de aeromodelos em recriar uma expedição aérea que anteriormente havia resultado na morte de Dieter Plage, célebre cinegrafista da vida selvagem, e toda uma linha e uma tonalidade narrativas haviam se estabelecido, Herzog vira a câmera de uma seção de testes do pequeno dirigível para o lado e diz (ou seja, filma) que devemos ver um outro alguém. Há um nativo da Guiana Francesa sentado num sofá; ao aproximar-se a câmera, ele nos diz que ali há uma cena de beleza. O pôr-do-sol – que não vemos – e um balão flutuante à sua frente, ambos diante de pacificidade de seu olhar imóvel e contemplativo. O que essa câmera nos diz? Ela me afirma, em sua aproximação, que deixou de ser aparato e se tornou uma instância. Seu desvio é símbolo daquilo que, na corrente dos acontecimentos, vazou. Vazou porque o olhar de Herzog, apurado com o de nenhum outro, sabe que aquilo que o cerca encontra-se nas virtualidades de um constante interesse, de um sempre devir. Na cena, se olho ao lado, uma outra história pode se desenvolver. Havia recurso mais inviável para a ficção?

É este mesmo homem que dará o título ao filme. ''Diamante Branco'', pilotado por Graham Dorrington, o sujeito-testemunho. E é curioso que Herzog, centenas de quilômetros longe do Brasil, a não ser que encontro com exímios narradores seja propriedade magnética dos grandes documentaristas, tenha encontrado similitudes tamanhas com Eduardo Coutinho a ponto de suas duas trajetórias fílmicas serem intensamente pontuadas por esses poderosos contadores de histórias. Ora, sabe-se bem que toda narração envolve um processo de fábula. A experiência tal como foi vivida só existe (existiu) na duração inalcançável daquele momento. Lembrá-lo é, portanto, imaginar, deixar que os processos mentais recriem a cena e a retirem do virtual, concretizando no presente a memória daquilo que devemos perceber em toda sua fragilidade. O que Dorrington nos conta sobre a lentamente desenvolvida catástrofe do piloto na Indonésia só assim o é porque, a despeito dos recursos estilísticos do dispositivo fílmico, ele é um potente narrador. Sua fala é afetada, sua memória tem aguçada longitude descritiva. Como humano ele inevitavelmente nos cativa. 

Todo esse poderio narrativo encontra ligaduras nesse mesmo aspecto que diferencia, como dito, o documentário da ficção convencional: ao abrir espaço para o não-ensaiado, a cena documental é disseminada em uma amplidão de possíveis eventos. Como um elástico cuja propriedade é a infinita expansão, a aderência àquilo que cerceia a câmera é liberto das obrigações de alcançar o que a cena programada circunscreve. É por isso que Herzog pode não só dizer que confrontou a postura de Dorrington como também pode atravessar o antecampo e se exibir enquanto esse conflito se instaura. A narração prevê esse embate e coloca o espectador numa posição delicada. Já parcialmente consciente de meu lugar do jogo, eu (nós) agora sou feito a entender pela imagem e pela tomada de posição que aquilo que desenrolava aos meus olhos na verdade tem furos. O aparato, originalmente criado para existir a despeito de, diz-me que sua tessitura se constitui por essas infiltrações do que não fazia parte do plano. O jogo comigo (conosco) se torna jogada de mestre.

A intenção de Dorrington é retirar a virgindade daquela parte da mata amazônica e explorar aquilo que ela pode dar a ver por cima, pela sua cobertura vegetal. Que movimento é esse? Cineasta para engenheiro, engenheiro para o mundo. As flechas de interesse apontam para uma mesma composição. Todos os grandes homens do cinema de Herzog são sujeitos cujo caráter de cineasta encontra-se além do estado embrionário. Desbravadores, aventureiros, ousados e famintos nesse desejo de captar uma sensibilidade, quase como se o dispositivo cinematográfico fizesse parte deles, estivesse ali introjetado, sabe-se lá desde quando. Pois arrisco dizer que a felicidade desses sujeitos em possuir olhos é provavelmente menor que a sensação de incompletude por não serem máquinas. Deles, ou pelo menos não somente deles, não sai essa articulação de imagens, essa composição montada de cenas, de ângulos, de pontos de vista. Felizmente, para isso, temos o cinema.      

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