Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Um dos melhores dramas dos anos 1990. Um filme fortíssimo em emoções.

9,0

Esse filme deve estar jogado nas profundezas da prateleira de sua locadora favorita e você talvez morra não sabendo disso. Não é lá tão antigo assim - o ano de produção é 1997 - e possui atores razoavelmente conhecidos, o maior deles é Ian Holm (recentemente fez Do Inferno e A Sociedade do Anel). Mas passou direto pelos cinemas (passou?) e não recebeu a atenção devida. Mas deixe-me dizer: é uma jóia de filme. Pra ser honesto, é um dos melhores dramas de todos os tempos. Ou pelo menos não fica tão longe disso, sem exagero! O Doce Amanhã é um filme extremamente forte em emoções, possui interpretações memoráveis e cenários maravilhosos. Junte tudo isso a uma direção primorosa do diretor egípcio Atom Egoyan e temos aí uma obra-prima. Obra que ainda deve ser descoberta, é claro.

O diretor Egoyan também exerce a função de produtor e roteirista do filme (que é uma adaptação), e dessa combinação normalmente sai coisa boa, basta ver os filmes de M. Night Shyamalan. O Doce Amanhã foi rodado inteirinho no Canadá, em cenários simplesmente maravilhosos de neve, o que garante também uma ambientação incrível para a triste história que é contada no filme. Temos uma comunidade deslocada da urbanização, no Canadá, daquelas onde todos parecem conhecer todos. Após um trágico acidente com o ônibus escolar que matou boa parte das crianças da cidade, um advogado, Mitchell, interpretado brilhantemente por Ian Holm, começa a visitar os pais das crianças com o objetivo de mover uma ação judicial para tirar dinheiro dos responsáveis pelo acidente, mesmo que não haja responsável algum. Porém, o instinto de advogado de Mitchell diz que ele pode conseguir bons milhões de indenização, seja de quem for.

A partir daí, toda a comunidade entra no que parece ser uma onda de fúria, atiçada pelo advogado, que quer levar a ação legal até o fim. Algumas pessoas acabam sendo contra essa ação, pois vêem que não há culpados na história, e assim o filme passa a retratar a vida de várias dessas famílias (casais, sempre), que perderam seus filhos no acidente (há apenas dois sobreviventes, que servem para Mitchell levar o caso adiante, manipulando-os a seu bom gosto). Todos os personagens, após o acidente, são frios, solitários, distantes, o que, juntamente com o clima, que possui as mesmas características, faz o espectador se sentir acuado, amedrontado pelo filme, pois a carga de tristeza e amargura é realmente grande. Contribui para isso o ritmo bastante lento que o diretor Egoyan dá à narrativa. Mas aqui lento significa bom, pois o ritmo ajuda ainda mais a impressionar o espectador no decorrer dos acontecimentos, enquanto acompanha o trabalho de Mitchell com os pais das vítimas. É algo difícil de ser visualizado sem se assistir o filme, mas é uma sensação que poucos filmes me proporcionaram até agora. Uma imersão na tristeza alheia que foi incrivelmente bem realizada.

Porém, a história do filme não termina por aí... ao mesmo tempo que apresenta a narrativa do advogado Mitchell com os pais das vítimas do acidente, o filme consegue mostrar, através de uma edição muito bem realizada, mais dois momentos das vidas dos personagens, que se passam em tempos distintos. Um, envolvendo problemas pessoais do advogado com a sua filha drogada. A cena em que Mitchell recorda o dia em que ela quase morreu envenenada, ainda criança, é disparada a melhor cena do filme, tamanha ternura e emoção que ela carrega (tanto que a cena está no pôster de O Doce Amanhã). A outra narrativa é, claro, a que mostra a vida dos habitantes da pequena comunidade antes do acidente fatídico até ele acontecer (em uma cena bastante impressionante). É incrível o contraste entre o antes e o depois. Novamente, o roteiro do diretor é totalmente feliz ao retratar essa mudança (sempre ajudado pelas belíssimas interpretações de todo o elenco).

O filme conta com um dos mais belos conjuntos de interpretações de um filme da segunda metade da década de 90. O que ajuda ainda mais é saber que o elenco não é formado por estrelas, o que garante que o espectador não tenha uma idéia pré-concebida da capacidade de cada ator (imaginem um Bruce Willis interpretando o advogado Mitchell, seria estranho e desviaria a atenção da história). Alguns diálogos são muito bons, não apenas pelo forte tom emocional pelo que proporcionam, mas pela qualidade do texto em si. Há também alguns temas fortes recorrentes em O Doce Amanhã, mas que, felizmente, nunca são tratados com muita profundidade, o que acabaria tirando a atenção da narrativa principal. Tais temas, só para citar, incluem incesto, adultério e paraplegia.

O Doce Amanhã não é perfeito pois tem alguns pontos - mínimos, é verdade - que podem ser considerados negativos. Em certos momentos a história pode se tornar um pouco confusa, e certas frases e referências entre personagens podem se perder na passagem de um tempo de narrativa para o outro (até porque o filme não faz questão de deixar totalmente claro quando há tal mudança). Também, o clima excessivamente negativista que é dado ao filme, e a lentidão em alguns trechos (mesmo que ela funcione para o filme), pode afastar alguns espectadores mais afoitos. O Doce Amanhã ganhou dezenas de prêmios ao redor do mundo, mas como teve apenas duas indicações ao Oscar (filmes indepentendes, por melhores que sejam, normalmente são injustiçados nessa premiação) acabou fazendo com que acontecesse o que foi comentado logo no início: o filme acabou se tornando um tanto desconhecido para o público em geral (pra mim mesmo também).

O Doce Amanhã conta ainda com várias passagens simbólicas, referentes à famosa história da literatura infantil na qual o menino tinha uma flauta mágica e com ela conseguiu limpar uma cidade infestada de ratos. Essa história é utilizada de forma perfeita para fazer um paralelo com a vida da única menina sobrevivente do filme, em mais uma passagem bastante interessante do filme. Enfim, é um drama praticamente completo e bastante original (embora alguns temas dentro dele não sejam, é bom deixar claro), e sendo assim, é fácil dizer que, se não é um dos melhores filmes do gênero de todos os tempos, pelo menos, com toda a certeza, é da década de 90. E finalmente, só à título de curiosidade, o último filme lançado comercialmente do diretor Egoyan ainda não chegou oficialmente ao Brasil. Chama-se Ararat. Espero ansiosamente por ele, desde já!

Comentários (0)

Faça login para comentar.