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Críticas

Cineplayers

"Tenho mais de mil cobranças a fazer, mas se eu falar de todas, a terra vai estremecer".

10,0

O cinema de Glauber Rocha sempre colecionou polêmicas. Esses dias mesmo, apesar da falta de brilho das discussões de outrora, seu nome esteve envolvido em uma controvérsia, quando o humorista Marcelo Madureira disse que Glauber era uma merda, na metonímia do autor-pela-obra. Até ato público de desagravo foi organizado contra a opinião de Madureira, e muitas coisas foram publicadas a respeito, inclusive: será que não se pode falar mal de Glauber Rocha nesse país? Envolvido nessa atmosfera estranha em que algumas pessoas se vêem, quando só conseguem aglutinar a seu respeito opiniões apaixonadas, em cima da linha entre amor e ódio, assim é também o exercício de escrever sobre ele. Mas parece que com o Dragão, difícil mesmo será dizer algo que já não tenha sido dito.

Quase 40 anos depois de ganhar o prêmio de direção no Festival de Cannes, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro faz sua reaparição nas telas do cinema depois da restauração pela qual passou, a partir de uma cópia francesa, o que explica o glossário inicial onde se conceitua alguns termos recorrentes como jagunço e cangaceiro, e a legendagem de algumas músicas.

Em O Dragão da Maldade é difícil esquecer que é realidade. Mesmo que a Santa (Rosa Maria Penna) tenha sotaque carioca, existe uma força de verdade que ultrapassa a encenação. E a expressão de Antonio das Mortes (Maurício do Valle) olhando através de nós quando finalmente entende onde mora a maldade é de cortar o coração. O povo de milagres, grande personagem, é quem dá corpo e voz a essa história. Quando as mulheres começam a cantar suas cantigas (pra mim, o ponto alto), é ativado um chamamento ancestral, uma coisa que põe a terra debaixo dos pés, mas apenas para aqueles que já a pisaram com alguma convicção. Foi assim que Glauber emblematicamente nos mostrou sua idéia sobre ‘coisa nacional’, aliás, alegoriza com rigor a mistura índio-negro-europeu que a gente decora na escola, mas quase nunca tem a oportunidade de ver explicitada: lamento, dança, estandartes, naturalizados no cotidiano daqueles que seguem com o cangaceiro Coirana (Lorival Pariz) na busca pelo acerto de contas com o tal dragão.

É assim que se passa a história, quando Antonio das Mortes é contratado por Matos (Hugo Carvana), o delegado, para dar cabo de Coirana, este novo cangaceiro que ameaça a ordem na qual a cidade vive sob os desmandos de Coronel Horácio (Jofre Soares). Velho e cego, o coronel não percebe que sua esposa Laura (interpretada pela belíssima Odete Lara) é triste por viver presa àquela cidade e seria capaz de matar para se ver livre disto. Ao mesmo tempo há o Professor (Othon Bastos, que numa entrevista diz ter se inspirado no próprio diretor para compor aquele tipo provocador), personagem que interpreta o papel com o qual devemos nos identificar: aquele que acompanhará Antonio das Mortes em seu caminho de descobertas.

As cores tiveram especial atenção, neste que era o primeiro filme colorido do diretor: Antonio das Mortes ganha doçura com aquele lenço rosado no pescoço, enquanto Laura se destaca dentro do vestido roxo esvoaçante ou ainda segurando um buquê de coloridas flores de papel. O Padre (Emmanuel Cavalcanti), de batina clara, revela uma postura ativa e o Coronel vive envolvido por aquele robe que lhe confere a cor do folclore. No país de cores estouradas o sertão tem as suas e alguns planos - que já se tornaram clássicos – impressionam pela teatralidade, como aqueles em que a multidão dança na pedra, ou em que a câmera segue Laura e o Coronel sendo carregados por alguns jagunços. Somando-se a isso, a fotografia de Antonio Beato ao mesmo tempo em que faz pensar num western, mostra o nordeste brasileiro e seus tons de amarelo-terra, efeito que pode ser sintetizado na cena de luta entre Antonio das Mortes e Coirana, separados pelo lenço rosado, lutando com espadas sob a cantoria das mulheres. Nordeste e western na mesma cena.

O frescor que o percorre vem das discussões que propõe e do país que ele pinta (literalmente), e não é preciso repetir que Godard e Sam Peckinpah são referências. E aqui vale ressaltar que as linguagens de O Dragão da Maldade e de A Chinesa (filme de Godard) se equivalem de alguma forma. E uma história que se conta sobre sua estréia em Cannes é a de que as manchetes de jornais alardeavam as 20 facadas que abalaram as estruturas do festival, fazendo referência à cena em que a personagem de Odete Lara lança sua fúria sobre o amante covarde, interpretado por Hugo Carvana.

Fiquei procurando palavras para descrever a experiência de assistir a este filme – que me pareceu muito mais direto em sua comunicabilidade com o espectador do que Terra em Transe – e descobri que é preciso vê-lo e é preciso tentar se comunicar com ele. Aliás, com Glauber Rocha é preciso querer comunicar-se, senão você corre o risco de se entrincheirar em um dos lados: amor ou ódio. E apesar desse discurso de amor e ódio eu dou nota dez, sem extremismos.

Texto retroativo da série Clássicos Brasileiros

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