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Críticas

Cineplayers

As faces de um mito.

5,0
Os anos 90 foram prodigiosos em filmes de ação genéricos que, dada nossa memória afetiva, conseguiram criar uma aura de nostalgia a um grupo de longas que provavelmente não sobrevivem a exibições para novas gerações. Cada grupo de pessoas tem seu Jason Statham, e seu Stallone. Os EUA acabaram fornecendo material da categoria de Passageiro 57, A Força em Alerta, Risco Total e Morte Súbita, que os 'novos vulgares' tentam trazer à relevância atual, alguns realmente memoráveis. Em determinado momento, uns longas 'europeizados' deram um giro no gênero, e apareceram títulos como O Pacificador, com ambientação estrangeira e uma espécie de preocupação global, elencos garbosos e um clima que equilibrava ação com certa emoção e tensão. O filme novo do cineasta Martin Campbell (que viveu bem os anos 90 em sua carreira) bebe dessa nostalgia e amalgama esses dois lados de maneira eficiente, ainda que esquecível. Mas talvez a função desses produtos não seja necessariamente deixar uma marca em nossas vidas. 

Em menos de um mês, o vencedor do Globo de Ouro alemão Em Pedaços voltará a ter como ponto de partida a cena inicial dessa nova produção de Campbell, que por ter dirigido longas da franquia 007 nos anos 90 conseguiu trazer para cá o seu James Bond, Pierce Brosnan. Mas não é exatamente ao redor dele que o filme gira, e sim de uma lenda: Jackie Chan, o grande e invencível heroi chinês, com um quê de acrobata que faz falta na tela grande. Sabemos do avançar da idade, mas se o tempo não permite mais o excesso, nos contentamos com o pontual que ele realiza aqui. Chan é o ponto focal de um longa que sente falta dele nas cenas onde não está, cuja câmera parece querer absorver tudo de seu carisma e do talento que aqui se expande para lugares que talvez só a China conheça a fundo. Ágil e ao mesmo tempo profundo, acreditamos em tudo que venha dele e através dele somos capazes de voltar a torcer, simplesmente, como nos bons tempos do cinema 'exército de um homem só'.

A primeira imagem que temos do seu rosto evoca o tempo passado, as marcas de expressão acentuadas, o olhar cansado, o homem comum por trás do outrora 'drunken master'. Ele está com a filha adolescente quando ela é assassinada num ataque terrorista, ele assiste a tudo, e por mais chocante que seja ver o homem Quan abraçado ao corpo queimado da jovem, é exatamente essa imagem que será marcante nesses primeiros 25 minutos de projeção, marcados pela dor desse homem impressa em cada cena. Dizem que o tempo traz credibilidade a um rosto; ao de Chan trouxe a certeza de estarmos diante de alguém igual a nós, sem nunca perder a proximidade com esse heroi de carne e ossos quebrados. E embora essas marcas ajudem a proporcionar a empatia necessária ao personagem, é o ator Jackie Chan, com suas ferramentas dramáticas muito afiadas, que nos revela o tanto dessa dor desse homem devastado que buscará sua merecida reparação. E esse início de textura diferenciada é primordial para a torcida do espectador, que compra em absoluto tudo que vem a seguir.

Campbell nunca teve uma assinatura forte, é sim um diretor sem marca autoral, uma espécie de trabalhador braçal da indústria. Para um profissional como ele, orquestrar o trabalho corporal de Chan, ainda que provavelmente seja de competência completa do ator, é um trabalho entregue com clareza, compreensão de cena e com espaço para as sequências onde Chan se esbalda e demonstra ainda ter lenha pra queimar. Seu primeiro grupo de cenas, que incluem a fuga pelo telhado de uma casa, trazem de volta a emoção de assistir o espetáculo que ele nos acostumou. Já nas sequências envolvendo o vice-primeiro ministro britânico com passado de passagens pelo IRA, vivido por Brosnan, impera um estado de suspense burocrático, à exceção de uma espécie de interrogatório perpetrado pelo mesmo, carregado de real senso de tensão. A notar que o ator não é responsável pela mesmice de suas cenas, e sim o material apresentado, que talvez nem pretendesse alcançar alguma excelência.

Ainda que hoje seja uma época onde John Wick, Atômica e congêneres sejam possíveis, Martin Campbell não é da nova geração de cineastas, que estão fazendo do 'vulgarismo' um material de real estudo cinematográfico entre a leitura de deslocamento de corpos, visões sobre o homem e a cidade e a relação entre o tempo e o espaço, principalmente o urbano. O diretor de Goldeneye é da velha guarda de paus mandados, contratados apenas para captar cenas velozes no mais rápido tempo possível, para ser consumido no mais rápido tempo possível, sem maiores efeitos de discussão. Ainda assim, ao se encorar num mito do seu tempo, Campbell ao menos deu a oportunidade desse homem não apenas mostrar uma faceta pouco exercitada, mas acima de tudo ele o trouxe de volta. E às vezes tudo que precisamos é de um bom punhado de mitologia.

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