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Críticas

Cineplayers

Crônica de tempos instáveis.

8,0
A arte criada é um documento do tempo. Reflexo de tempos passados, visão de tempo presente, ambição de tempo futuro. É um manancial de perspectivas ao mesmo tempo em que é um campo de batalha ideológico. Com o passar do tempo, os mais tradicionais valores são passíveis de questionamento e representações antes improváveis são capazes de mudar a percepção de nossa própria História. 

Se antes a região rural era considerada um refúgio da humanidade contra a degeneração moral dos grandes centros urbanos, uma série de artistas trataram de tecer o revisionismo e seu contraponto à visão rural idílica; foi o que nos Estados Unidos ficou conhecido como o Gótico Sulista, que injetava a visão visceral de autores vitorianos do século anterior como Bram Stoker, Mary Shelley e Oscar Wilde em meio às grandes propriedades americanas. Elementos e fundamentos históricos americanos como as grandes fazendas, as famílias burguesas, a escravidão e a Guerra de Secessão eram abordados através de um escopo que descortinou o crime, a loucura e o sexo, graças a escritores como William Faulkner e sua obra-prima O Som e a Fúria, Tennessee Williams e seu clássico texto teatral Um Bonde Chamado Desejo e Harper Lee e seu best-seller O Sol é Para Todos. Não tardaria para ganhar um equivalente cinematográfico que carregou cenários tipicamente western das sombras e luzes expressionistas, como o fizeram Anthony Mann em O Pequeno Rincão de Deus e Robert Aldrich em Com a Maldade na Alma.

Um dos descendentes imediatos desse período marcante, Thomas Cullinan só foi publicar O Estranho que Nós Amamos, seu debut literário e obra mais conhecida, em 1966, sendo adaptado para o cinema pouco anos depois, em 1971, com direção de Don Siegel e Clint Eastwood e Geraldine Page como protagonistas. A história do soldado da união John McBurney que é descoberto ferido na floresta pela pequena Amy e levado a um internato de moças para tratar de seus ferimentos e passando assim a se relacionar com as outras mulheres da casa, como as professoras Martha e Edwina, a aluna adolescente Alicia e as outras crianças Jane, Emily e Marie, apesar de voltar tanto tempo no passado (1864, três anos após o início da Guerra) encontrou ecos em pleno auge da Guerra do Vietnã, cultura hippie, caça a comunistas e libertação sexual. 

Avessa à ideia de remakes, a diretora Sofia Coppola (Encontros e Desencontros) foi convencida por sua designer de produção Anne Rose a assistir a versão de Siegel e, enquanto assistia, pensou em maneiras que poderia atualizar a obra - e o que lhe interessou foi contar a história do ponto de vista das mulheres da trama, investigando seus desejos, anseios e preocupações em uma época onde as mulheres ficavam em casa e homens do Norte e do Sul saíam de suas casas para matar uns aos outros.

Dificilmente Sofia Coppola concordaria com as visões do diretor da primeira adaptação, que leu O Estranho que Nós Amamos como uma história de sexo e violência; com seu cinema profundamente conectado ao universo feminino, seja acompanhando a história trágica da rainha da França em Maria Antonieta ou a história típica de classe média das irmãs Lisbon tomando uma curva sombria em As Virgens Suicidas

É tomada distância da primeira versão, apesar de manter fidelidade ao livro; o retrato das moradoras do internato recebe especial empatia que em larga escala vai além do puro desejo sexual após anos de repressão. Ao conhecer o gentil soldado da união, pouco a pouco cada uma projeta suas necessidades sobre ele: umas sentem falta de um parceiro, outras de um pai, ou simplesmente um confessor e um amigo. A competição que sentem não é parte de um joguete motivado pelo desejo, mas forma de extravasar as muitas questões que têm de enfrentar submetidas às rígidas regras sociais.

Rígidas regras sociais essas que servem como um inteligente artifício de Coppola para compor rimas visuais que são ressignificadas a cada aparição. Através da repetição de enquadramentos parecidos que imergem o espectador na rotina de estudar, rezar e comer, a cineasta constrói habilmente uma forma de situar o estado emocional das protagonistas e até mesmo subverter nossas expectativas. Assim, o momento em que todas se reúnem em enquadramentos gêmeos para rezar, por exemplo, denunciam momentos de dúvida, desejo ou até mesmo medo. Dessa forma, o internato parece ser sempre o mesmo, mas enquanto as máscaras caem os rituais têm transformados seus significados iniciais para que outros ganhem potência. 

Do início ao fim, a paleta cromática e a iluminação da fotografia praticamente não evoluem: estamos presos àquela casa, com a bela natureza fora contida pela grande estrutura de concreto que frequentemente é mergulhada nas sombras com apenas alguns. Por outro lado, o distanciamento curioso do início (grandes enquadramentos, muitos personagens, composição elaborada de quadro) chocam-se com a urgência dos eventos que mudam as vidas ali para sempre. Momentos como a ferida sendo suturada ou a postergada cena de sexo entre John e Edwina possuem uma composição frontal e brutal, com closes próximos mas ainda demorados. Quanto mais tempo ficamos ali, mais presos estamos àquelas pessoas, e assim que compreendemos as projeções que cada um tem para aquele evento limítrofe, as tais rimas visuais fazem com que imagens parecidas ganhem nossas próprias projeções transformadas. 

Coppola não é inocente e sabe que seu filme sobre a mais turbulenta das épocas para os americanos foi lançado em tempos confusos e divididos. Para além de uma pretensa guerra dos sexos onde tentam encaixar uma leitura mais primária do filme, há também a guerra de valores. Sul contra Norte, as mulheres brancas e de classe alta (a diretora e roteirista inclusive excluiu da história a escrava Hallie) contra um imigrante em busca de melhores condições de vida (John veio da Irlanda, aceitou lutar na Guerra unicamente por dinheiro e não por uma causa), o tradicionalismo e rigidez de Martha contra o desajuste e idealismo de Edwina (vinda de um contexto urbano) e a explosão hormonal de Alicia (rebelde e insubordinada). Aliás, Coppola também não exime John de falhas morais e, ao invés de ser um homem levado à ruína por sua interação com suas salvadoras e a disputa que elas competem por seu afeto, também é um agente ativo da queda, sendo ao longo da trama pouco transparente em suas intenções. Nunca sabemos por quem está realmente atraído, nunca sabemos exatamente o perigo que representa, seja por ser um soldado da União no Sul ou por ser um homem estranho em meio à mulheres. 

Nesse sentido, o poder do Gótico Sulista revela-se ainda ativo (junto a algumas produções atuais como a de Jeff Nichols, de Amor Bandido e O Abrigo e William Friedkin com a dobradinha Possuídos e Killer Joe), desconstruindo uma América tomada pelo ódio (contra minorias, divergentes ideológicos, figuras públicas, etc.), que ainda parece não conhecer a si mesma - é frequente o número de tramas que possuem uma espécie de “anjo exterminador”, ou seja, a figura alienígena dúbia, que possui potência de bem e mal, libertação e repressão dentro de si e que pode tanto salvar quanto destruir seus personagens, munindo Sofia Coppola do poder que só as fábulas têm. 

Poder de fábula esse que a diretora se interessa a cultivar há algum tempo - para os personagens de O Estranho que Nós Amamos, o fato de estarem sob o mesmo teto fisicamente não anula o fato que cada um ali dentro carrega uma história e tenta se agarrar a suas perspectivas de mundo, lutando pela preservação ou transformação. Constantemente separado do resto do grupo, o estranho é visitado por aquelas que sentem curiosidade de entender além do seu mundo, de dar chances não só ao outro mas à sua imagem de outro, em imagens ternas e diálogos sentimentais. Quando ultrapassa essa barreira por iniciativa própria, é descoberto como apenas mais um humano, com desejos, expectativas e fúria próprias, o que oferece um ponto de convergência na filmografia da diretora: seja na tragédia indie de As Virgens Suicidas ou em seus arroubos à lá Antonioni em Encontros e Desencontros e Em Algum Lugar é frequente a inquietação e angústia de não saber viver sozinho mas não conseguir conviver com os outros. 

Escolhido pela diretora por querer desprender-se da “realidade cafona e horrível” de Bling Ring - A Gangue de Hollywood, O Estranho que Nós Amamos não tem os mesmos excessos e recupera o minimalismo dos anteriores, impondo um projeto estético através de maneiras de utilizar elementos técnicos e cênicos para narrar uma história onde os acontecimentos são poucos mas carregados de passado e esperança, onde cada ação é justificada e o pouco diz muito. São três os eventos majoritários, mas todos eles carregam os desejos e medos de seus protagonistas, com a consciência do tamanho do obstáculo que suas situações, suas convicções e seu meio representam. 

Olhando para trás, Sofia olha para agora. Não aponta dedos acusatórios e cobra resoluções, mas antes extrai reflexões. Nesta fábula de uma terra de liberdade e oportunidades revirada por ódio e frustração, a diretora mais madura que nunca refina seu estilo e capta com seu olhar habitualmente sensível o zeitgeist dos nossos tempos confusos e desunidos, tão cheio de promessas mas também tão cheio de anseios. Perseguindo o que a instiga e sem resposta para o que a preocupa, tudo o que ela pode fazer é sua única maneira de registrar o subjetivo - ou seja, filmando.

Comentários (3)

Luiz Phillipe Lameirão Côrtes | terça-feira, 22 de Agosto de 2017 - 23:01

Podem me chamar de cabeça dura, mas não vou ver esse filme pra não correr o risco de me aborrecer. O original de 1971 foi um dos 10 melhores filmes que vi na vida, assisti umas 10 vezes, não tenho como ver esse novo sem tecer uma comparação.

Mateus da Silva Frota | segunda-feira, 27 de Abril de 2020 - 04:55

Críticas muito cultas Bernardo, boas análises e referências pontuais, parabéns.

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