Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Utilizando-se do surrealismo novamente, Buñuel filma um utópico e delicioso filme lotado de sequências geniais.

8,0

Quem nunca sentiu um inebriante desejo de subverter todas as regras de conduta social, desligar-se daquele paradoxo enfático que distingue o certo do errado e experimentar sensações que contrariam todo e qualquer padrão ordinário de ética? Garanto que, se este “ser” existe, ele não é nada, mas nada normal. O Fantasma da Liberdade, penúltima obra do mestre espanhol Luis Buñuel, é um filme que compactua “pessoalmente” com este tipo de sentimento. Aliás, é com ele que Buñuel finalmente liberta de seu corpo aquele espectro maldito que lhe assombrara durante toda a vida, o próprio “fantasma da liberdade”; afinal, o diretor nunca estivera tão livre para emaranhar o espectador em situações de pura oniricidade surrealística quanto agora, tendo como mote apenas aqueles supracitados questionamentos, entre algumas outras cositas más. 

É por isso que, a grosso modo, O Fantasma da Liberdade não possui nem ao menos uma história. Ou melhor, até poderíamos definir uma linha de condução narrativa para este grande conjunto de situações aparentemente desconexas que Buñuel utiliza para a composição da obra, mas ela passaria muito, mas muito longe de poder ser considerada uma trama, propriamente dita. Não é um filme que apresenta uma continuidade entre as seqüências, mas todas elas, por mais que sejam cabalisticamente surreais, servem para estruturar e ilustrar a mensagem que Luis tenta transmitir ao espectador: de que a liberdade, em virtude das amarras sociais e de nossa própria voluntariedade em segui-las, só pode ser experimentada por nós na forma de arte, sonho ou de pura ilusão. É uma utopia que, infelizmente, será irreversivelmente mantida como tal. 

Porém, mesmo com uma mensagem sutilmente amarga, Buñuel constrói em O Fantasma da Liberdade aquela que pode facilmente ser reconhecida como a obra mais hilariante de sua carreira – o que é um inestimável elogio, já que, mesmo quando não tem realmente esta intenção, o diretor nos brinda com momentos de extrema inteligência e sofisticação cômica. É um filme que se utiliza de absurdos, devaneios cáusticos da mente afiadamente genial de Buñuel, que compõem uma das maiores coletâneas surrealistas do cinema. Desde o início, passado na época das guerras napoleônicas, até o alucinado final, o que vemos é uma colagem preciosa de seqüências surtadas que apostam em uma sensacional inversão de valores para criticar, sempre de maneira embasada e, claro, cômica, os valores sociais mais desprezados pelo diretor – além, claro, de conter aquelas habituais alfinetadas na burguesia e no clericalismo (no caso do segundo, dessa vez, uma bela duma flechada, isso sim).

A maneira utilizada por Buñuel para conectar uma seqüência à outra, por sinal, é extremamente brilhante, e faz com que a mudança de situação não ocorra de maneira tão abrupta quanto se fossem divididas em simples esquetes – o que seria, certamente, a opção utilizada por um realizador mais ordinário. O diretor, em O Fantasma da Liberdade, sempre procura ligar os fatos através de uma personagem em comum entre as seqüências, ou seja, o figurante de uma cena passa a ser o protagonista de outra, que por sua vez resulta em algum fato que sucede um encontro entre a câmera e mais outro personagem, que virá a ter seu sonho relatado numa próxima seqüência, e por ai vai. Tudo é devidamente encaixado, passando uma sensação de pseudo-conectividade que realmente faz sentido aos olhos do espectador - pseudo em virtude de não terem, na verdade, uma relação entre si, a não ser esta que acabo de citar, forjada pelo diretor.

Um bom exemplo desta “conectividade artificial” (na verdade, todas as seqüências poderiam ser citadas aqui, mas tive de escolher apenas uma) é o momento em que, após ter passado a noite em uma pousada de estrada (em um dos momentos mais hilários do filme, onde o diretor deixa a câmera no corredor do hotel e passa a acompanhar as desventuras de uma gama de personagens excêntricos, desde padres viciados em jogatina até um casal sadomasoquista), uma personagem vai se preparar para prosseguir a viagem que realiza. A câmera desce com ela até o saguão, onde acaba por filmar sua conversa com outro homem. Quando se separam, ao invés de prosseguir junto à moça, Buñuel passa a acompanhar os movimentos do segundo elemento, no caso, o homem, iniciando uma nova seqüência. 

Esta seqüência, aliás, resulta em um dos momentos mais excêntricos e fantásticos de todo o cinema. É uma daquelas amostras completas da genialidade de um realizador, que não nos permitem desfrutar do benefício da dúvida. Trato de uma história contada pelo professor de uma academia policial, na qual Buñuel utiliza-se de uma irônica e finíssima inversão de valores para reforçar de maneira ainda mais explícita suas idéias contra as convenções pré-estabelecidas da sociedade, forçando seus personagens a protagonizarem uma descaracterização total de uma das práticas burguesas mais características (e bastante enfatizada pelo diretor): o jantar. É o relato de uma sociedade onde as pessoas se reúnem ao redor da mesa para defecar e, às escondidas, no “banheiro”, praticam o ato da alimentação. Um momento de pura genialidade - reflexo da mente doentia de Luis Buñuel -, que faz parte da conjuntura de um dos filmes mais singulares da carreira deste que fora um dos diretores mais autorais de toda a história. Uma verdadeira e imperdível obra-de-arte surrealística.

Comentários (1)

Matheus Duarte | segunda-feira, 06 de Janeiro de 2014 - 12:49

Uma comédia crítica transformada em obra de arte por Buñuel... Um dos filmes que mais me arrancaram risadas e o melhor que por trás de todo o humor existe muito conteúdo. Uma pérola que eu recomendo para qualquer um assistir. Aliás a crítica está a altura do filme, belo texto Daniel!

Faça login para comentar.