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Críticas

Cineplayers

Marcelo Gomes e Cao Guimarães fazem um filme sobre os homens que não se deixam ler.

8,0

O Homem das Multidões (2013) não se deixa ler - essa é a ideia que abre e fecha o conto homônimo de Edgar Allan Poe no qual o filme é livremente inspirado. E é essa ilegibilidade dos personagens que parece mover a parceria dos diretores Marcelo Gomes e Cao Guimarães. Enquanto no conto de Poe o narrador fica obcecado em seguir um homem que parece só encontrar satisfação ao caminhar a esmo pela multidão na cidade moderna do século XIX, os diretores brasileiros trazem o conto para a Belo Horizonte contemporânea e para os desdobramentos da solidão nas grandes cidades contemporâneas.

Juvenal é o homem das multidões. Maquinista do metrô da capital mineira, ele vive sozinho, não tem amigos, família e nem vizinhos, pois mora em um apartamento adaptado em um prédio comercial. Para além de seu trabalho nos trens e de uma rotina doméstica que inclui limpar o pequeno apartamento, conversar consigo mesmo e eventualmente se servir de uma colherada de doce, o prazer de Juvenal se assemelha bastante ao do personagem de Poe: vagar por horas entre as pessoas pelo centro de Belo Horizonte, sem estabelecer nenhum tipo de contato nesse percurso.

Essa estabilidade só é rompida pela aproximação de Margô, supervisora do homem das multidões que controla o fluxo dos trens. A relação que é a princípio apenas uma cordialidade de trabalho vai se transformando a partir do momento em que ela o convida para ser seu padrinho de casamento. O pedido incomoda Juvenal, que tenta recusá-lo. Mas para a moça, que explica só ter amigos na internet (onde também conheceu o seu noivo), essa recusa não é uma opção. O filme, então, adentra também na solidão de Margô, que tem pânico das multidões. Sua via de escape são as relações mediadas pelo computador, onde ela consegue estabelecer comunicação com outras pessoas. As únicas convivências próximas dela são o pai, que parece ter algum tipo de senilidade e com quem ainda mora; o noivo e, desde pouco tempo, Juvenal.

Assim, mais do que um filme sobre a solidão, O Homem das Multidões é sobre a amizade de pessoas solitárias - como se o narrador de Poe se aproximasse finalmente de seu andarilho e os dois estabelecessem alguma forma de afeto. Nesse sentido, é interessante observar essa escolha de adaptação do roteiro nesse primeiro longa resultado da parceria de Marcelo Gomes e Cao Guimarães. O filme, ao mesmo tempo em que encerra a trilogia de Cao sobre a solidão - da qual fazem parte A Alma do Osso (2004) e Andarilho (2006) - amplia a temática do ser solitário para as singelas possibilidades de encontro na solidão, agregando de certa forma a força de encontros e amizades improváveis do cinema de Marcelo Gomes, vista principalmente em Cinema, Aspirinas e Urubus (2005).

Se o filme desvia um pouco a temática de Poe, ele não foge da sua abordagem principal: o homem (e também, nesse caso, a mulher) da multidão é aquele que não se pode ler, não se deve explicar, psicologizar, colocar em um arco narrativo de transformação ou redenção. O encontro entre os personagens não resulta em uma mudança brusca na vida de nenhum deles, apenas na possibilidade de prazer na companhia silenciosa.

A solidão, nesse sentido, só é possível como uma experiência, e no caso do cinema, como uma experiência de tempo e imagem. A experiência do tempo vem sobretudo da escolha do filme pela micronarrativa do cotidiano. Na imagem, há a escolha de janela quadrada pouco convencional, pois limita bastante o espaço do filme e dos personagens. Mais do que a multidão em planos amplos que engole os personagens, o filme procura reduzir o espaço da tela centrando-se na sua relação próxima com os personagens solitários.

Talvez o maior problema de O Homem das Multidões seja o de nem sempre conseguir fugir dos clichês que estão colados à solidão como temática. Se é funcional e didático comprovar a solidão de Juvenal pelo fato de ter apenas um copo em sua casa, não deixa de ser também um truque de roteiro batido. Da mesma forma, a solidão digital pós-moderna de Margô e a sua vida virtual intensa não consegue, em muitos momentos, ir além de uma representação caricatural. A própria contraposição da solidão analógica dele versus a solidão virtual dela se estabelece em um terreno de pureza em que essas naturezas não se contaminam e relativizam. Se o homem da multidão é aquele não se pode ler, esses atalhos no imaginário contemporâneo acabam desviando o filme do seu propósito.

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