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Críticas

Cineplayers

Uma fuga da cartilha "não existe amor em SP."

8,0

Desde O Fim do Sem Fim (2001), Cao Guimarães trata preferencialmente dos marginalizados sociais. Das figuras deslocadas dentro de um padrão cosmopolita rígido, trazendo à tona a existência de personagens normalmente invisíveis ao nosso olhar viciado, de eremitas a andarilhos solitários, chegando ao ápice existencial em Ex-isto (2010), seu filme mais extasiante. O universo cinematográfico de Marcelo Gomes, por sua vez, parece sempre encontrar uma relação entre o homem e a cidade, seja em sua Verônica repleta de questionamentos – e o mar, propriamente natural, como fuga, libertação - ou no sonho de chegar à capital do personagem de João Miguel em Cinema, Aspirinas e Urubus (2004), na busca duma “vida melhor”.

Os cinemas dos diretores confluem para adaptar o conto homônimo de Edgar Allan Poe, inserindo as reflexões evocadas pelo inglês na metrópole contemporânea. Para isso, o filme faz um tour de force ao apresentar Juvenal, um maquinista de metrô em Belo Horizonte, frisando em várias sequências a sua solidão. Através de um plano aberto (dentro dos limites da janela de exibição), a câmera capta o protagonista em meio a uma multidão sem foco e inexpressiva, ausente de particularidades. Nesse sentido, o filme se aproxima muito da obra na qual foi baseado, já que o narrador do conto também observava uma aglomeração sem se atentar a ninguém, ao menos num primeiro momento. O que poderia sugerir inicialmente uma aversão às massas por parte do protagonista revela-se, na verdade, um apreço por estar no coletivo.

Sim, Juvenal permanece um ser isolado cuja capacidade de sociabilização é praticamente nula. Não obstante, agrada-lhe estar na multidão e desaparecer na massa da metrópole, algo nunca tratado como patologia pelos diretores, mas como um traço próprio do homem pós-moderno. Entende-se, assim, a solidão como fruto justamente desse apagamento nos grandes centros urbanos. Destoando de boa parte da produção sobre o tema “drama na cidade grande”, muito presente no cinema contemporâneo (como no famigerado Medianeras: Buenos Aires na Era do Amor Virtual [Medianeiras, 2011]), não há julgamento do personagem, tampouco o retrato da solidão enquanto sinônimo de depressão. Marcelo Gomes e Cao sabem respeitar o personagem. Paulo André confere uma variedade de camadas a Juvenal, seja na singela alegria ao elucubrar sobre a proposta de ser padrinho de casamento, na empolgação ao narrar os eventos mais banais possíveis de sua vida, mas tão especiais, ou mesmo no nervosismo encantador ao conversar com uma figura feminina.

O mesmo cuidado na construção do protagonista não se aplica completamente a Margô, interpretada pela vivaz Silvia Lourenço. Se, por um lado, a personagem não parece triste com sua condição de ter apenas amigos virtuais, demonstrando ser um sopro de vivacidade na vida de Juvenal, por outro, o filme trata essa característica como algo a se lamentar. Não que Margô seja, de fato, solitária. Contudo, num discurso um tanto conservador - embora não tanto quanto numa obra feito Ela (Her, 2014), de Spike Jonze -, suas amizades virtuais parecem não ser tão válidas quanto uma experiência presencial. Particularmente, tenho predileções pelo contato extra-Internet, não minto. Porém, existem formas de felicidade que residem apenas nessas relações online. Fica muito latente esse julgamento quando, em certo momento, a personagem comenta sobre o fato de ela ter vários amigos pela rede, mas não ter nenhum padrinho para estar presente – em carne e osso – no seu casamento. Perceba: ela não diz isso com um tom necessariamente melancólico, pois parece superar facilmente o problema, mas existe, embutido nessa frase-exemplo, algum esmorecimento, conforme a visão muito específica dos autores.

Não por acaso, a felicidade plena de Margô se dá no plano carnal, ou seja, no encontro físico dos dois corpos. Ainda assim, Cao Guimarães e Marcelo Gomes tratam com tanta sinceridade o romance entre os dois solitários, conduzindo tudo no ritmo próprio dos personagens, tornando o discurso conservador facilmente nebuloso perante a beleza dos encontros do casal. E a cena final é especialmente encantadora, onde ambos os personagens encontram, de alguma maneira, um conforto interno.

Circunscrevendo toda a ação do filme em uma janela reduzida, tão estreita quanto a própria vida de Juvenal (ou, numa outra leitura possível, remetendo à asfixia da metrópole), a dupla de diretores capta Belo Horizonte com frieza e distância. Longe de qualquer pessimismo pós-apocalíptico, do tipo “não existe amor em BH”, desabrocha, em O Homem das Multidões, uma flor em uma paisagem onde aparentemente há apenas cinza.

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