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Críticas

Cineplayers

Através de um personagem irrepreensível e moralmente majestoso, Zinnemann se confirmava como um dos grandes diretores de sua época com esta obra-prima.

10,0

O cinema dos anos 1950 e 1960 produziu filmes que fazem com que essas duas décadas – especialmente a primeira – seja até hoje comemorada por quem é apaixonado pela arte. Filmes de roteiros fortes, diálogos inspirados e personagens marcantes, que não precisavam de artificialismos nem soluções fáceis para agradar ao público como “Uma Rua Chamada Pecado”, “Quem Tem Medo de Virginia Woolf?” e “Gata em Teto de Zinco Quente”, produzidos nessas décadas, conseguem até hoje prender a atenção dos mais exigentes espectadores só com a força dos elementos citados acima.

O Homem que Não Vendeu sua Alma faz parte desse precioso acervo, que hoje deve ser revisitado por todos que amam cinema. A história, baseada na peça de Robert Bold e adaptada ao cinema por ele mesmo, é uma dramatização da vida de Thomas More, uma personalidade irrepreensível. Adepto ferrenho da Igreja (não da instituição, mas de seus ensinamentos), desafiou as leis de sua época e acabou sendo injustamente considerado traidor do rei. Séculos depois, virou santo. Não cabe aqui uma biografia maior de sua vida – a Internet está aí para isso, ou mesmo um documentário no DVD do filme explica em mais detalhes quem foi Thomas More. Mas é justo dizer que, pela sua magnífica personalidade, aliada à qualidade de Fred Zinnemann como diretor, este filme é uma verdadeira obra-prima.

Apesar de o filme pular certos aspectos da vida de Moore, como, por exemplo, nunca dar muita atenção ao fato dele ter publicado inúmeros livros que hoje são considerados obras-primas, como “Utopia”, onde defendia uma sociedade que ele considerava ser a ideal, sua conduta e ideais aparecem intactos na obra de Zinnemann. Paul Scofield foi um dos grandes responsáveis pela maestria dessa transposição de sua vida para o cinema. Seu desempenho sempre firme traz veracidade a um personagem improvável. Moralmente perfeito, pode ser considerado um exemplo comparável aos grandes mocinhos da história do cinema, como Smith, de A Mulher Faz o Homem, feito por James Stewart.

Todos os personagens possuem excepcional carga dramática e construção precisa, o Rei Henrique VIII consegue se mostrar descontraído e perigoso apenas pelo seu olhar, por exemplo. Não há personagens nem tampouco momentos gratuitos.  As atuações, ao lado dos diálogos, são a grande força do filme. Os personagens vivem inúmeros tipos de humor e sabem transpor isso muito bem para a tela. Quando Paul Scofield dá um berro extasiado em sua defesa em pleno julgamento de sua pessoa, a única sensação que sobrou para a minha pessoa foi de arrepio e prazer. É um desses raríssimos momentos absolutamente perfeitos que somente obras-primas nos proporcionam.

A direção de Fred Zinnemann garante que este seja uma das grandes adaptações do teatro para o cinema da história do cinema, ao lado de filmes como “Desencanto” e do já citado “Gata em Teto de Zinco Quente”. O diretor soube, assim como outros diretores o fizeram nesses outros filmes, manter os textos inteligentes e transportá-los ao mundo do cinema sem nunca deixar de soar minimamente interessante. Bem pelo contrário, ele aproveitou as vantagens da “mídia” cinema e melhorou um texto feito para o teatro, ao lado do roteirista Robert Bold, criando também locações belíssimas para o filme, como o próximo parágrafo discute.

A fotografia é magnífica. Um colorido intenso mostra de forma graciosa o luxo dos ricos em contraste com as cores mortas das residências dos pobres. A recriação de época também ficou excepcionalmente bem cuidada, tentando duplicar, o quanto fosse possível, os acontecimentos da vida real, pelo menos até onde estes eram conhecidos. O Cardeal Wolsey, personagem de Orson Welles, utilizou o mesmo selo oficial do verdadeiro Wolsey, por exemplo. Detalhes como esse último engrandecem o todo e, mesmo que passem de forma transparente para o público maior, inconscientemente fazem a diferença, pelo menos para o espectador que enxerga o cinema como uma forma de arte.

Este é um desses raros filmes que fluem com perfeição, ou seja, não aparentam ter diálogos ou acontecimentos fora de sintonia. E o que nos é apresentado, tem força e vigor, além de qualidade suprema, ajudado pelo fato de seu personagem principal ser uma figura real, o que configura ele como um exemplo de vida palpável. Por tudo isso, merece a nota máxima. Fred Zinnemann, que já havia chegado perto da perfeição com o faroeste “Matar ou Morrer”, cravou seu lugar na história como um dos grandes diretores de duas das principais décadas da história do cinema. Nada mal mesmo.

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